(conto)
O que eu vou contar não é um causo do Jeca Tatu, a velha praga de Monteiro Lobato. Este já morreu bem mortinho e com ele a polêmica dos urupês, a insensibilidade embalada numa forma magistral, no entanto a falta de visão dos problemas sociais. Morreu também o Jeca Tatu gordinho, aquele do Biotônico Fontoura, caipira reabilitado pelo mesmo Lobato que o detratou, depois transformado no Zé Brasil. Tudo mortinho da silva. O Jeca urbano é que sobrevive na pele de um dos muitos imbecis do Umberto Ecco.
Não há mais causos de jecas, até porque eles não estão mais por aí, salvo um ou outro perdido nesses grotões. Alguns vêm para a cidade e ganham dinheiro com violão em punho, com sotaque caipira e estórias repisadas.
Sou da cidade e o que me aconteceu, na roça, nada tem a ver com causos que deram tanto mote a tantos escritores. Estão aí para ser lidos e saboreados. A figura com que me deparei estava longe de ser o Jeca Tatu, não estava de cócoras, nem tinha pito de barro para tirar baforadas de fumo picado a canivete.
Explico melhor, sou o que antigamente chamavam de caixeiro viajante, vendo balas e doces, faço pedidos de venda em venda, nas zonais rurais, entrego também no meu furgãozinho. Na verdade, sou formado em curso superior, mas não encontrei ganhos suficientes.
Foi numa bela tarde de primavera, final de outubro, o céu já vermelhava no poente, indicando frio, eu comia poeira numa estradinha da Serra da Canastra, na nossa gloriosa Minas Gerais, que eu cobria na sua região mais ao sul.
Parei numa vendinha mal ajambrada, uma a quem já fornecia meus produtos, tendo também um arremedo de pousada, providencial para mim, pois já se fazia tarde. Ia ter de jantar e pousar naquele local ermo.
Tomado o banho meia-boca, com aquele friozinho de montanha, sentei-me numa mesinha do pequeno bar, para comer o rango da Nhá Mariazinha, a viúva dona do local. Após o jantar de surpreendente cozinha mineira, da boa, estava a pitar uma cigarrilha, como o fazia de vez em quando –depois de ter parado de fumar cigarros havia muitos anos. Apenas para recordar. Bem baixinho, a Nhá Mariazinha ouvia no rádio umas modas de viola. Ninguém mais no local, que eu visse de pronto.
A luz era fraca, tipo lâmpada de quarenta watts, e notei que em outra mesa, bem próxima à minha, havia alguém sim, não sei de onde saiu. O salão, se assim se pode chamar o local das mesinhas da espelunca, era diminuto. O sujeito, que eu apenas entrevia na fraca luz e em meio às minhas próprias baforadas, olhava fixo para mim.
Juro que é tudo verdade, o que aconteceu comigo não é mentira. Não sou homem de inventar, nem exagerar nada. Para mim é tudo ali na verdade crua e nua. Em façanhas de pesca não sei nem alardear, conto o real, se fiquei pagão ou se peguei peixe grande.
O indivíduo encarado definitivamente era bem estranho, fui logo me arrepiando todo. Eu olhava meio incomodado para os lados, procurando com os olhos a figura conhecida de Nhá Mariazinha, para me tranquilizar. Era um sujeito corpulento, de má catadura, que me incomodava, até porque não desviava os olhos de mim. Eu estava quase me levantando e indo para o meu quartinho sem tirar nem mesmo um dedo de prosa –bate-papo como se diz na cidade– com a minha hospedeira.
De repente, não mais que de repente, a figura do estranho pareceu mudar, de maneira mágica e aterrorizante. Não era mais o caboclo corpulento, mas um menino negrinho, um virtual saci, com um sorrisinho irônico e estranho nos lábios. Não sei se vi direito ou o se a cachaça pura da serra que ingeri estava lá fazendo seus efeitos –a caninha era uma herança que Nhá Mariazinha recebeu do marido Dito Doido.
Eu já suava frio e o saci parece que dizia coisas incompreensíveis. O tinhoso ficou assim por uns longos cinco e intermináveis minutos. Eu, a esta altura grudado na cadeira velha, quase que despachando ali mesmo a galinha e o bom queijo canastra, por cima ou por baixo.
Súbito, a figura foi se avolumando e transformou-se num negro velho, tipo tio Barnabé ou Pai Tomás, contudo furioso, de pito na boca, expressão rebarbativa e posso dizer bem ameaçadora.
Na minha cabeça passaram rápidas lembranças dos momentos preconceituosos que fizeram parte da minha existência, aquela má herança cultural dos antepassados dominantes. Paguei os meus pecados, parece que o cidadão de feição feroz entrava nos meus pensamentos e tornava-os dolorosos: uma verdadeira antecipação do purgatório.
Ficamos assim por cerca de dez minutos, os mais demorados da minha vida, até que, não aguentando mais e suando como um porco, consegui erguer o corpo e me desgrudar da cadeira, a muito custo, absolutamente terrificado. Levantei-me de supetão e parece que não via mais o infeliz.
Fui aos fundos da venda e falei com voz trêmula com Nhá Mariazinha, aliás, sempre muito calma. Ela negou de pé junto –acredite− que tivesse outra pessoa na vendinha, fosse freguês, fosse alguém mais, pois vivia sozinha, com as galinhas e um par de mulas. Fiquei mais aterrado e contei a ela todo o episódio. Ela apenas sorriu com sua boca desdentada −já era bem idosa− e revelou:
─ É filho, nesta época do ano parece que bruxas e bruxos andam soltos por este sertão.
Sem poder mais falar, dirigi-me ao meu sofrível quartinho e, depois de uma noite sem pregar os olhos, não havia ainda clareado o dia quando dei no pé, ou melhor, no acelerador do furgãozinho, deixando o dinheiro da conta em cima da cômoda. Nem me despedi da velha, saí levantando poeira. Minha vida nunca mais foi a mesma.
Acredite se puder.
> José Roberto Fourniol Rebello é formado em direito. Atuou como juiz em comarcas cíveis e criminais em várias comarcas do estado de São Paulo. Nascido em São Paulo, vive em São José dos Campos desde 1964, atualmente no Jardim Esplanada. Participou do movimento cultural nascido no município na década de 60.