Foto / Pixabay

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Na tarde calma e quente daquele dia consagrado a São Miguel Arcanjo, dois cavaleiros trotavam os cavalos no ritmo preguiçoso do pequeno lugar. Na rua, silêncio, quebrado apenas pelo bater ritmado da ferradura na pedra fria do calçamento.

Alegres, os cowboys conversavam vistos por nuvens multiformes no céu. De calças jeans, botas e chapéus de aba larga, os jovens, ainda imberbes pela pouca idade, seguravam as rédeas com mãos inertes, mergulhados em frivolidades, sorrisos e gestos.

Sobre tordilhos de fino trato seguiram num vagar despreocupado e cruzaram a rodovia em direção ao morro dos Guedes. Por certo passeavam. De suas selas macias cumprimentavam educadamente os moradores nos portões e alpendres. Na última casa da rua a mulher na janela não correspondeu. Parecia enfezada.

Súbito, eis que surge na estradinha de terra, descendo o morro, um dos tordilhos sem o cavaleiro. Em fúria, o desembestado escoeceava o ar. O que teria assustado o cavalo? –perguntava a mulher aos seus botões, enquanto corria para o portão onde, sob seus pés, terminavam os paralelepípedos e principiava o perigoso e malfalado aclive.

Em todos os sentidos, o morro dos Guedes era um espanto. Mas tinha a vantagem de encurtar sobremaneira a viagem para quem saía da cidade em direção ao bonito Vale do Itagaçaba.

No começo da subida, grandes touceiras de bambu-brasileiro emergiam dos lados da estrada para se abraçarem no alto, num arco de sombra, frescor e beleza. Depois, até o topo do morro, só velhos pés de eucaliptos, poleiros para as aves de rapina.

Não era qualquer carro que subia o morro. Com chuva aquilo virava um sabão, de dificultar até para os animais cargueiros. Sem contar que as margens exibiam irremediáveis crateras produzidas por violentas enxurradas. Do outro lado a descida era suave, por topos e planaltos, de onde se avistava o vale. Um colírio para os olhos.

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Não bastassem as dificuldades geográficas, o morro povoava o imaginário da pequena cidade com uma história de arrepiar. Falava-se que por ali vagava o espírito de Zé da Bota, peão carreiro morto ao despencar com o carro no precipício. Uma santa cruz na beira da estrada sinalizava o fatídico acontecimento.

Não se sabe quem deu de propagar a fantasmagórica aparição, que rapidamente virou verdade. Segundo a lenda, o espírito do além vestia branco, tinha olhos de fogo e dava de vagar à noite, sendo visto, em certa ocasião, a contemplar do barranco o destroçado carro de boi no breu do brejo.

Houve um tempo em que só se falava nisso no muquifado bar do Dutra, história que o finado Brito, então assíduo no boteco, contava com detalhes. O fantasma existia, sendo certo que dava as caras na noite da derradeira sexta-feira de cada mês, garantia.

Pura conversa mole, rebatia João Generoso. O papudo dizia em rompantes de valentia que passava pelo morro dos Guedes em qualquer hora do dia ou da noite e que, se a alma penada aparecesse, pereceria no chumbo –fazendo sinal característico com a mão direita.

Para a mulher com cara de poucos amigos não fora à toa que o cavalo tinha derrubado o jovem cowboy e galopado ladeira abaixo. O bicho deparou com alguma coisa de amalucar, mas o quê? Teria sido uma simples peçonha ou o espírito do Zé da Bota? Sem achar resposta, fez o sinal da cruz e entrou.

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Até hoje, depois que anoitece, quem se atreve passar pelo morro dos Guedes invoca antes a proteção de um santo guerreiro, pois não sabe se o que o povo conta é verdade. Na dúvida, uma vez por mês a comunidade se reúne diante da santa cruz para um derrame de sal grosso, uma reza forte e um rogo para que a alma do carreiro desfrute do repouso eterno. De preferência em outra freguesia, caso tenha o sono leve.

Até por falta de voluntário não se conhece o efeito da mistura para aquietar o ser do outro mundo, mas, querendo, o leitor ou a leitora pode ajudar a decifrar essa história macabra visitando o morro dos Guedes na última sexta-feira deste mês do cachorro louco. Depois da meia-noite, claro! Alguém se anima?

 

> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.

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