Depois que saiu da pequena cidade para morar no grande centro, Cândido Silvino nunca deixou de visitar o lugar onde morou 40 anos. Candinho, como era chamado, saiu do bairro Itagaçaba contra a vontade. Não queria sair de onde tinha nascido e crescido. Mas, que remédio! Por causa das intempéries do tempo ele não tinha mais como manter a família naquele chão. Foi embora deixando amigos e raízes.
Para matar a saudade, sempre voltava ao arrebalde. Mesmo com brevidade, passava de casa em casa, a pé, pois o lugar era roça e as casas ficavam distantes umas das outras.
No começo as visitas eram regulares. A cada dois ou três meses chegava batendo palmas, alegre. Entrava, sentava num banco tosco da casa simples e engatilhava a conversa para contar as novidades, relembrar as histórias e dar muitas risadas. Tudo molhado com café.
Devido ao avanço da idade e da partida de muitos amigos para a eternidade, com o tempo Candinho viu os laços com a terra natal esgarçarem-se. Mas continuou as visitas, então rarefeitas. Quando menos se esperava, ele aparecia no portão com um sonoro “ôoo de casa!”.
Dependendo da hora, a dona da casa ia para o fogão fazer café, servido com biscoito, bolo de fubá, bolinho de chuva. Nada de café corajoso! Se do almoço o horário era vizinho, danavam-se os da casa atrás de uma galinha no terreiro para, depois, servi-la à moda caipira, com angu, quibebe, arroz e feijão gordo. Preparada no fogão a lenha, a comida era farta, como é próprio do homem da roça.
Experiente e acostumado à vida do campo, Candinho era um serelepe. Mas, perto de completar 60 anos, deu de fazer o seu périplo na companhia do filho Bernardo, o Nardinho, para prevenir eventualidades como uma queda, uma peçonha, o ataque de um boi bravo ou sabe-se lá o quê. Com vinte e tantos anos e saúde de ferro, o jovem rapaz garantia sua segurança.
Apesar de nascido no Itagaçaba, Nardinho tinha saído de lá com o pai, portanto, bem cedo. Sua afinidade com o morador da localidade era pouca, porém admirava o esforço do pai em manter acesa a chama das antigas amizades, e andava com ele por aquelas bandas com muito gosto.
Numa das quase aventuras por aquele fim de mundo, num final de tarde Candinho viu-se acossado por um temporal que o obrigou a pousar na casa de Zé Costa, quando o plano era dormir na fazenda do seu tio Manoel, mais adiante uma hora a pé. Estava acompanhado do filho.
De cabelo orvalhado e pele judiada pelo sol, Zé Costa era um homem de cenho franzido e uma quase doentia macambuzice, o que não lhe emprestavam boa fama. Mesmo assim, enquanto no Itagaçaba, com ele Candinho manteve boas relações de amizade e o visitava sempre que por ali passava.
Viúvo, “seu” Zé morava numa casa simples, parcialmente escondida por uma carreira de taquaruçus, no morro arfantes pelo vento. Tinha a companhia da filha mais velha, do genro e das netas Maria Alice e Maria Amélia, de 10 e 12 anos, respectivamente. Duas meninas bonitas, porém, arredias e introvertidas.
Naquela tarde, fugindo da tempestade, Candinho e o filho chegaram afoitos na casa de Zé Costa. Não demorou e a chuva caiu forte, torrencial, insistente. Para não prosseguirem com a andança à noite, por caminhos difíceis, aceitaram o convite do anfitrião para dormirem ali. Tomaram banho, jantaram e conversaram bastante com o dono da casa.
Quando chegou apressado, Candinho vestia manga de camisa. Já o filho protegia-se da brisa fria por uma vistosa blusa vermelha com finos fios dourados entremeados no tecido. De bom caimento, a vestimenta abraçava o pescoço feito cachecol e fechava do lado esquerdo do ventre com oito grandes e reluzentes botões dourados, combinando com os fios dos detalhes.
Ao se recolher por volta de nove horas, com o pai, Nardinho deixou a blusa dobrada sobre a mala num móvel na sala. No dia seguinte, com o sol a pino, pegou a blusa e pôs dentro da mala. Depois do café, agradeceram o pouso e foram para a derradeira visita. De lá alcançaram a estrada de rodagem e pegaram o ônibus para a cidade, onde se hospedavam na casa de um parente.
Era sábado e como planejavam pegar o ônibus de volta para casa no dia seguinte, pai e filho resolveram ir à missa vespertina para cumprirem o preceito. Soprava um vento frio e Nardinho foi pegar a blusa na mala. Ao vesti-la, levou um susto. A veste não tinha um mísero botão. Os oito botões tinham sido removidos sem nenhum jeito com a ajuda de uma tesoura, que deixou buracos na roupa.
Foi na casa do Zé Costa, reclamou o filho. Mas quem e por quê?, perguntavam-se. Para Nardinho foi “seu” Zé, que achou que eram de ouro e surrupiou os botões. Por sua vez, o pai não quis acreditar que tivesse no Itagaçaba um amigo da onça e atribuiu o sumiço dos botões a uma traquinagem das Marias.
Naquela tarde a campanha do agasalho da paróquia ganhou uma linda peça para, quem sabe, sob mãos habilidosas, ter alguma arrumação. Quanto a Nardinho, o mancebo cumpriu o preceito assistindo à missa do último banco da igreja, logrado, triste e tiritando de frio.
> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.