Foto / Facebook/Reprodução

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Depois que saiu da pequena cidade para morar no grande centro, Cândido Silvino nunca deixou de visitar o lugar onde morou 40 anos. Candinho, como era chamado, saiu do bairro Itagaçaba contra a vontade. Não queria sair de onde tinha nascido e crescido. Mas, que remédio! Por causa das intempéries do tempo ele não tinha mais como manter a família naquele chão. Foi embora deixando amigos e raízes.

Para matar a saudade, sempre voltava ao arrebalde. Mesmo com brevidade, passava de casa em casa, a pé, pois o lugar era roça e as casas ficavam distantes umas das outras.

No começo as visitas eram regulares. A cada dois ou três meses chegava batendo palmas, alegre. Entrava, sentava num banco tosco da casa simples e engatilhava a conversa para contar as novidades, relembrar as histórias e dar muitas risadas. Tudo molhado com café.

Devido ao avanço da idade e da partida de muitos amigos para a eternidade, com o tempo Candinho viu os laços com a terra natal esgarçarem-se. Mas continuou as visitas, então rarefeitas. Quando menos se esperava, ele aparecia no portão com um sonoro “ôoo de casa!”.

Dependendo da hora, a dona da casa ia para o fogão fazer café, servido com biscoito, bolo de fubá, bolinho de chuva. Nada de café corajoso! Se do almoço o horário era vizinho, danavam-se os da casa atrás de uma galinha no terreiro para, depois, servi-la à moda caipira, com angu, quibebe, arroz e feijão gordo. Preparada no fogão a lenha, a comida era farta, como é próprio do homem da roça.

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Experiente e acostumado à vida do campo, Candinho era um serelepe. Mas, perto de completar 60 anos, deu de fazer o seu périplo na companhia do filho Bernardo, o Nardinho, para prevenir eventualidades como uma queda, uma peçonha, o ataque de um boi bravo ou sabe-se lá o quê. Com vinte e tantos anos e saúde de ferro, o jovem rapaz garantia sua segurança.

Apesar de nascido no Itagaçaba, Nardinho tinha saído de lá com o pai, portanto, bem cedo. Sua afinidade com o morador da localidade era pouca, porém admirava o esforço do pai em manter acesa a chama das antigas amizades, e andava com ele por aquelas bandas com muito gosto.

Numa das quase aventuras por aquele fim de mundo, num final de tarde Candinho viu-se acossado por um temporal que o obrigou a pousar na casa de Zé Costa, quando o plano era dormir na fazenda do seu tio Manoel, mais adiante uma hora a pé. Estava acompanhado do filho.

De cabelo orvalhado e pele judiada pelo sol, Zé Costa era um homem de cenho franzido e uma quase doentia macambuzice, o que não lhe emprestavam boa fama. Mesmo assim, enquanto no Itagaçaba, com ele Candinho manteve boas relações de amizade e o visitava sempre que por ali passava.

Viúvo, “seu” Zé morava numa casa simples, parcialmente escondida por uma carreira de taquaruçus, no morro arfantes pelo vento. Tinha a companhia da filha mais velha, do genro e das netas Maria Alice e Maria Amélia, de 10 e 12 anos, respectivamente. Duas meninas bonitas, porém, arredias e introvertidas.

Naquela tarde, fugindo da tempestade, Candinho e o filho chegaram afoitos na casa de Zé Costa. Não demorou e a chuva caiu forte, torrencial, insistente. Para não prosseguirem com a andança à noite, por caminhos difíceis, aceitaram o convite do anfitrião para dormirem ali. Tomaram banho, jantaram e conversaram bastante com o dono da casa.

Quando chegou apressado, Candinho vestia manga de camisa. Já o filho protegia-se da brisa fria por uma vistosa blusa vermelha com finos fios dourados entremeados no tecido. De bom caimento, a vestimenta abraçava o pescoço feito cachecol e fechava do lado esquerdo do ventre com oito grandes e reluzentes botões dourados, combinando com os fios dos detalhes.

Ao se recolher por volta de nove horas, com o pai, Nardinho deixou a blusa dobrada sobre a mala num móvel na sala. No dia seguinte, com o sol a pino, pegou a blusa e pôs dentro da mala. Depois do café, agradeceram o pouso e foram para a derradeira visita. De lá alcançaram a estrada de rodagem e pegaram o ônibus para a cidade, onde se hospedavam na casa de um parente.

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Era sábado e como planejavam pegar o ônibus de volta para casa no dia seguinte, pai e filho resolveram ir à missa vespertina para cumprirem o preceito. Soprava um vento frio e Nardinho foi pegar a blusa na mala. Ao vesti-la, levou um susto. A veste não tinha um mísero botão. Os oito botões tinham sido removidos sem nenhum jeito com a ajuda de uma tesoura, que deixou buracos na roupa.

Foi na casa do Zé Costa, reclamou o filho. Mas quem e por quê?, perguntavam-se. Para Nardinho foi “seu” Zé, que achou que eram de ouro e surrupiou os botões. Por sua vez, o pai não quis acreditar que tivesse no Itagaçaba um amigo da onça e atribuiu o sumiço dos botões a uma traquinagem das Marias.

Naquela tarde a campanha do agasalho da paróquia ganhou uma linda peça para, quem sabe, sob mãos habilidosas, ter alguma arrumação. Quanto a Nardinho, o mancebo cumpriu o preceito assistindo à missa do último banco da igreja, logrado, triste e tiritando de frio.

 

> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.

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