O júri na comarca de Votuporanga estava armado. Era o primeiro que eu presidia como juiz de direito substituto, naquele fevereiro de 1984. Cuidava-se do caso de um matuto que teria tentado matar o patrão com um tiro de espingarda.
Ajudado pelo simpático juiz titular, já tinha em mente todo o ritual característico de uma sessão do júri, as palavras a pronunciar, o sorteio dos jurados, as rejeições do promotor e do advogado, a inquirição do réu e o restante. Enfim, nunca havia feito aquilo, de resto nem ninguém que não fosse juiz.
Fazia um calor infernal na cidade, aliás, característica da região. Como se diz, dava até para fritar ovos nas calçadas. Isso acrescido do costumeiro calor dos novatos. Suava à beça, de paletó e gravata, encimados pela toga. Naqueles dias e naquela canícula, suava tanto que chegava a manchar as gravatas.
Como é difícil iniciar-se na magistratura, mesmo para alguém com dez anos de advocacia. É o mesmo assunto da advocacia ou do ministério público, porém as situações específicas são diferentes, até porque são funções diversas.
Logo nos primeiros dias fiquei sozinho −eram férias forenses de janeiro, só funcionavam casos urgentes, como audiências de réu preso ou do então sumaríssimo. Não só na comarca de Votuporanga, como em toda a circunscrição abrangida por ela, englobando várias comarcas vizinhas. Os titulares estavam de férias e não havia nenhum outro juiz, a não ser este iniciante.
Certo dia, o cartorário me trouxe uma comunicação de flagrante para despacho. Peguei o documento e me fechei no gabinete, o funcionário esperando do lado de fora. E agora, o que despachar? Não ia perguntar a ele, evidentemente.
Fiquei bem uns cinco minutos ali matutando. Para aqueles que não são da área, esse comunicado o delegado emite e envia imediatamente ao juiz, sendo cópia do auto de prisão em flagrante de qualquer pessoa que comete crime. O juiz ouve o promotor e decide se mantém ou relaxa a prisão; forma-se um curto procedimento.
Estava ali naquele tormento dos novatos quando ouço um barulho no corredor e alguém interpela o escrevente, indagando o porquê de estar ali. Cheguei a orelha perto da porta. O cartorário responde:
─ Estou aguardando esse tonto do juiz despachar um “autue-se, ao ministério público”.
Graças a Deus ouvi e logo sapequei o despacho. Vejam só, eu ia despachar para juntar ao processo, quando não havia nem autuação e o processo penal obviamente não havia sido iniciado. Salvo pelo gongo, devolvi o documento, impassível.
Voltando à estória do júri, inquirido o réu e não tendo mais testemunhas a serem ouvidas, passei aos debates, cabendo promotor e advogado sustentar acusação e defesa, na sequência.
O jovem promotor estava particularmente enfático, também acho que era seu primeiro júri, pintando o caso com cores fortíssimas, taxando o réu de criminoso violento e ruim. Na mesa do plenário, os objetos do crime, como a dita espingarda terrível. O promotor verberando contra o réu, que se utilizou daquela perigosíssima arma na sua tentativa de tirar a vida da infeliz vítima!
Aí teve a má ideia de pegar a espingarda para mostrar aos jurados, para impressioná-los, segurando-a pela coronha, apontando-a para o assustado corpo do júri.
Na verdade, o instrumento do crime, a tal apavorante arma, era uma mera pica-pau, espingarda artesanal, feita na zona rural por gente simples, com material comum, um cano, uma coronha esculpida, gatilho e cão, disparando um tiro de cartucho ou algo assim. Serve para caçar passarinhos, é a arma do Jeca Tatu. Essa espingarda caseira dificilmente poderia matar alguém e certamente não era uma arma de criminoso, muito menos violento.
Para infelicidade do promotor de justiça, quando ele apontava a pica-pau para o júri não é que o cano da espingardinha se soltou e caiu no chão com grande barulho? O digno representante da acusação ficou segurando o cabo da pica-pau, com cara de espanto, para uma gargalhada geral, tanto da plateia como dos advogados e do próprio júri, além de escreventes. Menos eu, que tive de conter o tumulto, com cara fechada, não sem bastante esforço.
Não deu outra, o réu foi absolvido por unanimidade. O coitado do promotor acredita até hoje que alguém sabotou a arma, soltando o cano de propósito!
> José Roberto Fourniol Rebello é formado em direito. Atuou como juiz em comarcas cíveis e criminais em várias comarcas do estado de São Paulo. Nascido em São Paulo, vive em São José dos Campos desde 1964, atualmente no Jardim Esplanada. Participou do movimento cultural nascido no município na década de 60.