Foto / Facebook/Reprodução

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

À proximidade de mais um inverno veio-me à lembrança o amigo Pedro. Chamado de Pedro da Pinta por causa de um marcante sinal de nascença abaixo do olho direito, ele me contou a seguinte história, aqui com as suas palavras.

Perto de completar onze anos ganhei uma muda de árvore cuja espécie não sabia. Ou melhor, sabia, porque quem me deu contou, mas na minha meninice não dei importância. Antes de chegar em casa tinha esquecido. Fincada em terra boa numa lata de óleo de cozinha, tinha um palmo de verde e viço. Não mais do que isso.

Acerca da arborização pobre do sítio onde morava com os meus pais e dois irmãos mais velhos, o presente dado pelo vizinho de cerca foi por mim comemorado. A muda era sobra do que o homem tinha plantado na frente do seu pedaço de terra para, no dizer dele, no futuro ter ali imponentes soldados; não de guarda, mas de beleza. Seis mudas de cada lado do portão, em fileiras.

Passava por aquele local todos os dias vindo da escola, uma estrada de terra sem muito movimento. Nas duas margens, chácaras e pequenos sítios, a maioria improdutiva. Naquele dia tinha recebido o boletim escolar e as notas de História e Geografia não eram boas. Pensava na desculpa que daria para minha mãe por tão fraco desempenho, por isso estava mais distraído que de costume.

PUBLICIDADE

O vizinho era um homem de pouca idade, forte e estatura média. Tinha pele, olhos e cabelos claros o que, deduzo, lhe valiam o apelido de Galego, chamado assim inclusive por meu pai. Ao dar a muda, Galego sugeriu-me plantá-la onde eu precisasse de um soldado vestido de vermelho no inverno e verde no resto do ano.

Não entendi o que quis dizer com aquilo e também não perguntei, pois, como disse, preocupava-me em achar argumentos para justificar notas tão baixas para a régua de dona Lurdes, minha mãe. Mochila nas costas, lembro apenas de apertar a lata junto ao peito e correr para casa tendo as folhas da pequena planta a roçar o meu rosto.

Naquele dia abandonei o caminho mais curto e habitual, onde era obrigado a me equilibrar numa rústica pinguela sobre o ribeirão do Padre. Com apenas uma das mãos livre, eu não podia correr o risco de deixar o pequeno soldado desmilinguir-se na correnteza lá embaixo. Por isso preferi a segurança da ponte de madeira bem mais à frente.

Cheguei em casa esbaforido, mas feliz. E fui ver com meu pai sobre o melhor lugar para plantar aquela muda, o que ele deixou ao meu critério. Plante e cuide, limitou-se a dizer. E do alto de sua experiência disse tratar-se de um exemplar de mulungu vermelho, ou suinã, comum na Mata Atlântica.

Foi assim que, na vastidão da serra depositei as raízes daquela plantinha sob o calor da terra. Nem tão longe dos meus olhos, nem distante dos meus pés, para que dela pudesse cuidar sem preguiça. Cresceu na imensidão, ao léu, olhada e molhada do céu.

Passados alguns anos o meu pé de mulungu se tornou uma árvore jovem, exuberante. Até o dia em que, pela primeira vez, num tempo como este, perdeu totalmente as folhas verdes para, depois, se transformar num vermelho intenso, de flores cortejantes de insetos e pássaros. Foi quando fizeram sentido as palavras de Galego, anos atrás, ao dar aquela muda para um Pedrinho angustiado por causa das notas da escola.

PUBLICIDADE

Com o passar dos anos, filhos criados e desinteressados do fabrico de queijos, negócio que sempre teve ali, meu pai deu de falar em vender a propriedade. Ao mesmo tempo colocou na cabeça que devia construir um monjolo. Com que madeira? Do mulungu. Tentei convencê-lo a achar uma alternativa para preservar a bela árvore. Em vão.

Meu pai já tinha afiado o machado e rabiscado no papel o engenho quando, num domingo, tocou no assunto da venda com o seu compadre e meu padrinho. A conversa em casa despertou o interesse do visitante e terminou no cartório, com a assinatura da papelada. Menos de um mês depois a gente estava de mudança para a cidade.

Assim, por obra do acaso, a grande suinã foi preservada. O novo dono daquelas terras tinha decidido eternizar a paisagem com as cores verde do campo, azul do céu e vermelha do mulungu, até hoje imponente e altivo sobre o morro, como um soldado.

 

> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.

PUBLICIDADE