Naquele dia o coronel Joaquim Rodrigues acordou cansado. A noite, quase toda em claro, foi de preocupação com o estado de saúde e a fraqueza, que só aumentava, da mulher Ira Acácia.
O acidente com Ira aconteceu uns dias antes quando ela, já no quinto mês de gestação, resolveu entrar no porão onde guardavam mantimentos. Inclusive as garrafas de restilo, cachaça da melhor qualidade, que os pretos libertos da fazenda insistiam em surrupiar. Para evitar essas entradas sorrateiras o capataz Honório colocou atrás da porta do porão um boneco de trapos, cheio de guizos nas pernas e braços, que faziam um alarido estridente ao abrir a porta. Esqueceram de avisar à Ira que, assustada, rolou pela escada abaixo quando ao abrir a porta chacoalhou o Gervásio, nome dado ao malfadado boneco.
A mulher machucou as pernas, caiu com as costas no chão frio e úmido do porão, e ficou acamada por dias com dores e febre alta. O coronel, chateado com o acontecido, pediu ao Honório que jogasse o boneco Gervásio no rio São Francisco, cujas águas margeavam a Fazenda do Corisco, não muito longe da nascente do grande rio, que por ali já passava largo e aberto aos barcos de pescadores.
Para o coronel e Ira, que pouco apresentava sinais de melhora, os dias se arrastaram longos naquele último ano do século XIX. Naqueles dias o coronel Rodrigues se manteve sóbrio, desconsolado que estava com o estado da mulher.
O fazendeiro amealhou as terras do Corisco, no noroeste das Minas Gerais, ao longo de muitos anos de trabalho árduo, suportado pelo pequeno grupo de escravos libertos que, por falta de alternativa, permaneceram naquelas terras onde ao menos lhes era garantido um teto e comida. Rodrigues era um homem rude, de poucas palavras, que dedicava as horas do dia a cuidar das terras, e ao anoitecer, após cada jantar servido por Ira, se embriagava de cachaça até adormecer. Anos depois, para desgosto de Ira, perdeu boa parte das terras em jogatinas, prostitutas e cachaça.
Ira Acácia Rodrigues, uma mulher brava e reservada, como o próprio nome deixava transparecer, casou-se por acerto acordado entre os pais dela e Joaquim Rodrigues, a quem só veio a conhecer poucos dias antes do casamento. Uma prática comum naqueles tempos. Nessa transação matrimonial pode ter havido alguma partilha de terras ou outros bens, mas Ira, adolescente, não foi informada. Não tinha ainda 18 anos quando ficou grávida e sofreu o acidente que quase levou sua vida.

Até que chegou uma notícia no Corisco. Em uma vila não muito longe dali um santo vinha operando milagres, já forjando rezas, ladainhas e romarias de desesperançados de toda a região. “Vamos até lá seu coronel, não custa nada tentar”, disse o capataz Honório, que acompanhava de perto a angústia do patrão. A viagem a cavalo não seria longa, umas cinco horas, dava até para ir de madrugada e ainda retornar no mesmo dia à fazenda. E assim fizeram.
Dois cavalos arreados, matula com carne seca, pão e água para se abastecer no caminho que começaram a percorrer ainda sob o céu escuro e pouco calor. Ali, naquela parte das Minas Gerais próxima à Serra da Canastra, as águas do velho Chico e a vegetação abundante não impediam o calorão que judiava da terra quando o sol vinha a pino e já era quase verão. O plano era chegar cedo no vilarejo, fazer as rezas e promessas necessárias, se preciso fazer doações ao pároco, e retornar no lusco fusco para o Corisco.
O vilarejo Perobas parecia viver dias de festa e glória. Gentes de todos os lados não paravam de chegar ao local onde o tal santo, devidamente instalado em pedestal de entalhe dourado, o mais bonito da Igreja, recebia as rezas, promessas e ladainhas. As duas únicas hospedarias do povoado estavam lotadas, tanto assim que logo os moradores arrumavam seus cômodos, tiravam a criançada dos quartos e abriam espaço para oferecer abrigo aos peregrinos. E, claro, ganhar uns bons contos de réis.
O pároco das Perobas vivia momentos de exaltação e euforia desde que o santo apareceu por ali. Logo enxergou na oportunidade uma fonte de recursos para reformar a igreja, a casa paroquial, ajudar aos pobres, e até dar um apoio ao prefeito que já não tinha mais como esconder as terras que comprava e as viagens que fazia, sabe-se lá com quais recursos. Com a ajuda do santo talvez pudesse construir alguma ponte, melhorar o casebre que chamavam de escola, e até trazer uma professora normalista formada na capital para ensinar às crianças que saiam da escola mal sabendo ler. Assim ficaria livre das maledicências do povo.

Em poucas horas o coronel Rodrigues e seu capataz Honório perceberam os benefícios que o tal santo trazia para o vilarejo. Ao entrar na igreja para cumprir a promessa e pedir a benção ao santo, Rodrigues permaneceu cabisbaixo, em posição de respeito que a sacralidade do pequeno templo exigia. Mas Honório, após rodar os olhos por todo o interior da igreja, parou estupefato quando olhou de frente para o altar. Lá, no alto do pedestal dourado, estava o santo e mesmo a uma boa distância, já que o povo fazia fila para se aproximar da imagem, reconheceu os trapos e guizos. Chacoalhou o braço do patrão e deu a notícia: “Coronel, o santo é o Gervásio!”
Indignado, Rodrigues procurou o pároco e relatou toda a história do boneco de guizos, do acidente da mulher, e do grande engano que estavam cometendo, ludibriando as pessoas com a conversão de um boneco inútil em um santo milagreiro. O pároco, sem demonstrar muita surpresa, implorou ao coronel que deixasse as coisas como estavam pois o vilarejo de Perobas nunca antes viu tanta gente e tanto dinheiro. Como católico fervoroso que era, o fazendeiro resolveu se aquietar e, no final da tarde, retornou à fazenda. Afinal, pensou, como diz a Bíblia, “a fé move montanhas”. E um povo tão miserável e sofrido merecia um santo padroeiro.
Gervásio, como visto, não era nenhum santo. Sequer algum dia fora um ser humano, como a maioria dos santos e santas. Mas, pouco tempo depois, Ira começou a melhorar, os movimentos voltaram, as dores foram sumindo, e daí a alguns meses a parteira da região foi chamada. A mulher do coronel pariu dois bebês, um menino e uma menina, ambos robustos e inteiros. Os gêmeos receberam os nomes de José Rodrigues e Maria Augusta Rodrigues. Maria que quando moça foi a mulher que conheceu o mundo a cavalo e, bem depois ainda, foi minha avó materna. Desde eu menina me pegava de jeito para contar histórias como essa que até hoje, já na última etapa da vida, encantam e alegram a minha existência.
> Fabíola de Oliveira é jornalista há 46 anos (MTb nº 11402/65/38/SP) e tem doutorado em jornalismo científico pela USP. Aposentada do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), onde era responsável pela área de comunicação, foi depois professora e coordenadora do curso de jornalismo da Univap. Vive na Vila Ema.