Eu juro que quando me sento à frente do computador para escrever a coluna da semana aqui no SuperBairro, venho alegre e descontraído, achando que vai rolar uma crônica gostosinha ou uma mensagem bem otimista para você que está lendo este texto agora.
Juro, eu me esforço. Mas confesso que os temas que me atraem são mais áridos que os da maioria dos meus colegas colunistas deste portal de notícias, embora todos, com certeza, estejam atentos aos seus compromissos de levar lazer, cultura, diversão, informação, prestação de serviços e tudo o mais que vocês valorizam –ou deveriam valorizar.
Pensei, pensei e veio à minha cabeça nesta semana uma questão importantíssima, um assunto que deveria ser motivo de projetos sérios e abrangentes dos nossos governos. É a questão dos nem-nem. Sabe o que é isto? São os jovens entre 15 e 29 anos que não estudam e nem trabalham. No Brasil e no mundo.
Um estudo do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social) descobriu que, em 2020, nada menos que 29,3% da população brasileira nesta faixa etária nem estudava e nem trabalhava. Você acredita que esse grupo é formado, aqui no Brasil, por nada menos que 12 milhões de pessoas?
E digo mais: um relatório da Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), da ONU, apontou que a taxa de jovens brasileiros da geração nem-nem é o dobro da de países ricos. E o que é pior, essa taxa aumentou ainda mais nestes tempos de pandemia de covid-19.
Pleno emprego
Vou dar uma parada neste circo de horrores que eu estou traçando, sem querer, mas por obrigação, para voltar no tempo. Prefiro voltar a um tempo que vivi, porque vivi os tais tempos e os vi “com os olhos que a terra há de comer”, ou seja, ninguém me falou, eu vi.
Eu vi fábricas sendo construídas para empregar 3 mil, 5 mil pessoas, isto sem falar nas “arrasa-quarteirões”, tipo Volkswagen, General Motors etc. que davam emprego para mais de 10 mil, 20 mil trabalhadores.
Eu vi as pessoas comprando o “Estadão” no domingo e/ou a “Gazeta Esportiva” na segunda-feira para procurar rapidamente os anúncios de “empregados procurados” e ir à porta das fábricas, lojas e escritórios. Imagine que esses e outros jornais estampavam, entre domingo e segunda, todas as semanas, milhares de vagas. Vagas para quem sabia muito, mais ou menos ou quase nada.
Eu vi gente mais humilde ir buscar, no Senai e em escolinhas técnicas particulares, um pouco de conhecimento para entrar no mercado de trabalho. Nós estávamos vivendo a época do pleno emprego, lá no início dos anos 70. Tecnicamente, pleno emprego é uma taxa de no máximo de 4% de desemprego. Entende-se que a própria dinâmica da economia faça girar esta roda, dando oportunidades para todos.
Eu vi os mais necessitados de levar dinheiro para casa, logo aos 14 ou 15 anos, se virarem com ocupações simples e de retorno rápido. Eram os office-boys dos escritórios, os empacotadores dos supermercados, os ajudantes do comércio, até os carregadores de compras das feiras livres.
Eu vi também os mais ambiciosos –ou seriam os mais inteligentes?–, disputarem vagas nas melhores escolas públicas de ginásio e colegial da época. Toda cidade mais populosa tinha o seu colégio de referência, como aqui em São José dos Campos tivemos o João Cursino, que existe até hoje. No meu caso, em São Bernardo do Campo, o colégio se chamava João Ramalho. A diferença é que, para estudar nesses “tops” do ensino público era preciso prestar um exame chamado “admissão”, em que a nota de corte girava em torno de 7 ou 8, se não me engano.
Eu vi, e vivi tudo isso. Uma época em que, quem precisava trabalhar ia à luta, e quem podia só estudar tinha que “ralar” em busca dos melhores colégios. Os primeiros tinham que entregar o envelope do pagamento para os pais; os segundos, o boletim com as notas do mês.
Depois de ler essa descrição de um passado que eu julgo saudoso, sugiro que eu e você que me lê neste momento façamos uma rápida viagem daqueles anos 70 até os dias de hoje. Vamos fazer o “julgamento” dessa geração nem-nem?
Inocentes?
Alguns argumentos para dizer que esses jovens não têm culpa do destino que os levou até este ponto.
– A modernização dos processos e a tecnologia fecharam milhões de postos de trabalho. Hoje, uma empresa que contrata 50 profissionais ganha até notícia de jornal.
– As funções mais simples foram extintas ou absorvidas por outros profissionais que tiveram de acumular funções em um mercado altamente competitivo e, pior, restrito. Exemplo: poucos supermercados contratam empacotadores hoje em dia e nem existe mais a função de office-boy nos escritórios.
– Com a falta de empregos, os jovens levaram a pior, porque gente mais velha se dispõe a fazer o trabalho rudimentar que eles faziam. Sem contar os idosos, que precisam engordar as mirradas aposentadorias se candidatando a essas funções.
– O nível de ensino na escola pública caiu assustadoramente. Além disso, disputas sindicais levaram o aluno a ficar em segundo plano enquanto governos e professores faziam intermináveis discussões (hoje menos, talvez até pelo enfraquecimento dos profissionais da educação em relação aos governos).
– A opção que se apresentou a quem precisava de formação técnica rápida, através de escolas particulares e de ensino à distância, se mostra muito mais um grande negócio para as empresas do ensino e um péssimo negócio para os estudantes. Outro dia vi um banner em redes sociais divulgando um “curso de jornalismo” por meros R$ 99,50 por mês. Arapuca para quem acha que vai se formar e conseguir emprego. Quase sempre, consegue uma dívida que não vai conseguir pagar.
Culpados?
Espera aí, tudo bem que as barreiras são gigantescas para quem quer e precisa vencer na vida hoje em dia. Será que essa geração é culpada por não fazer as melhores escolhas? Vamos ver.
– Falta comprometimento, falta atitude. Ora, hoje em dia, quem quiser adquirir conhecimento tem tudo à sua frente com a Internet, com a informatização, com a proximidade dos caras que mostram como chegar lá, tipo “coaches” e “influenciadores digitais”.
– As escolas podem não ser como antigamente, mas são mais inclusivas, dão espaço para todos, enquanto lá nos anos 70 os melhores colégios eram para os melhores alunos.
– Se você for um empreendedor, pode ficar rico da noite para o dia, basta se dedicar bastante e fazer as coisas certas. Não faltam investidores em boas ideias e em bons empreendedores.
– O mercado de trabalho é mais competitivo, mas oferece maiores oportunidades de ascensão rápida. Basta mostrar resultados.
– Essa história de que os jovens podem sofrer pressões do crime organizado, das milícias e de outros poderes paralelos que atuam na comunidade, é uma grande bobagem. Só vai para o crime quem quer.
– No Brasil não existe racismo, não existe preconceito, não existe favorecimento para os jovens de classes mais favorecidas. Isso é conversa de quem não se prepara para a competição.
Inocentes ou culpados?
Bom, acho que você percebeu que eu consegui ser sério quando relacionei os motivos pelos quais os nossos jovens nem-nem de 15 a 29 anos estão em meio a uma trágica realidade nos dias de hoje. E percebeu como eu não consegui acusá-los de serem culpados de alguma coisa.
Ou seja: eles são totalmente inocentes. São vítimas de uma realidade bastante cruel, que começa, em muitos casos, no próprio lar, em uma família desestruturada, marcada pelas drogas, pelo alcoolismo, pela violência, pela própria falta de emprego e renda dos pais.
Passa pela comunidade acossada pelo crime organizado, pela desesperança coletiva, pela precariedade da vida em sociedade. E termina em um poder público que simplesmente não tem os recursos necessários para mudar essa realidade. Não tem nem mesmo leis que possam lhe dar os instrumentos para fazer desses jovens os adultos preparados de que o país necessita.
Onde ficamos, então? No meu modo de ver, ficamos na necessidade de um rompimento com essa postura de “não é comigo, isso é coisa do governo, que não presta”; ficamos no compromisso que cada um deve ter com a sua família, principalmente com as suas crianças e adolescentes; ficamos com a obrigação dos governos de, primeiramente, dar segurança a quem precisa, seja nas áreas nobres das cidades, seja nas periferias e, depois, estabelecer políticas econômicas que tenham em mente não só o desenvolvimento tecnológico, mas também o aproveitamento de uma força de trabalho que é a empregadora de todos os homens/mulheres públicos deste país. O povo produz emprego para os políticos e tecnocratas para que eles criem empregos para o povo.
Vamos pensar nisso?
Antes de chutar a bunda do jovem que é parte da sua família, que tal pensar nas dificuldades que foram criadas para essa geração nem-nem ao longo de todos esses anos? A sociedade permitiu que esse monstro fosse criado para os jovens de hoje em dia. Cabe à sociedade destruí-lo.
A geração nem-nem é uma das realidades mais tristes que a falta de governos comprometidos e sérios no passado gerou para o Brasil de hoje. É uma tarefa urgentíssima desfazer este nó. Uma geração perdida pode levar todo o futuro do Brasil à ruína. E acredite, está levando.
P.S. – Esta abordagem foi feita por um jornalista e cidadão. Nada acadêmico, nada teórico. Se você enxerga esse problema e as soluções de uma forma diferente, fica convidado a comentar no espaço que está sempre disponível nas redes sociais onde esses textos são publicados. Sem debate, sem réplica, nem tréplica, só a sua opinião. Conto com a sua participação.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.