Foto / Portal Serra do Cipó/Reprodução

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Era um dia de belo sol e nós na serra da Cantareira, Parada de Taipas, município de São Paulo, na época, final da década de 1950, ainda zona rural, bucólica e serena.  Papai arrendara um sítio que era o remanescente de grande e antiga fazenda. Já reduzida, porém, no tamanho, quase tomada pela floresta.  Tinha a casa velha, bem arruinada, que nós compartilhávamos com morcegos. Local muito bonito, ainda com bastante mata atlântica, verdadeiro paraíso aos nossos olhos de adolescentes de cidade grande.

Papai mandara limpar tudo e fizera um platô para servir como campo de futebol, do qual eu e meu mano fazíamos bastante uso. Meio duro, já que não tinha muita grama, mas servia também como esplanada na frente da casa velha.

Eu, nos meus dinâmicos onze anos de idade, no alvorecer dos sentidos, além de me enamorar de toda moça que lá chegava, ganhei um formidável facão, indo furioso pela mata, desferindo antiecológicos golpes, aqui e ali, derrubando árvores, sentindo-me poderoso.  Subia com vigor pelo morro, perto da casa, por onde descia um fio de água cristalina e gelada, de uma nascente bem acima.

Certo dia, curioso e arteiro como sempre, deparei-me com uma velha caixa d´água, quando tive a má ideia de levantar a tampa.  Assomou-me à cara um enxame de marimbondos ou abelhas ditas mamangavas, rajadinhas, ganhando ferroada por todo o rosto. Durante minha infância e adolescência levei muitas picadas de abelhas, marimbondos e vespas, mas aquelas foram doídas. Não desisti, porém, continuava a fuçar tudo.

Curioso como nos recordamos mais do mal do que do bem. Será porque simplesmente nos marca mais?  Não sei, lembro-me de vários momentos edílicos e bucólicos, mas não me saem da cabeça o trágico e o patético em muito maior número.

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Pois bem, voltando ao dia de sol, não sei mais se foi um almoço, papai levou dois moços ao sítio, virtuais compradores de lotes, pois ele era corretor de terrenos rurais na época. Eram pessoas simples e boas, mas beberam num alambique ali perto e quiseram passear de charrete, mesmo um tanto embriagados.  Animados, fizeram com que eu fosse junto.

Eu, todo garboso, de facão na cinta, achei divertido quando os dois obrigaram o cavalo a correr. Total imprudência num caminho estreito, de terra, tudo morro. Foram exatamente o trágico e o patético de que me lembro. A bendita charrete passou por cima de um toco, numa curva, e capotou, jogando fora os três. Eu e os dois bêbados voando pelo meio do mato.

Eu teria desmaiado, como disseram depois, confesso agora que a memória me falha; recordo-me apenas de alguns arranhões.   Mamãe quase teve um ataque quando viu que eu havia rolado no mato com o facão na cintura.  Os dois tontos, um quebrou o braço e outro ficou bem escalavrado.  O cavalo, coitado, não me lembro.

Para terminar a assustada jornada, no entanto, uma boa notícia: nesse mesmo dia, já tratados os acidentados, todos na sede, meu pai achou esquecida debaixo do assoalho, escondida pelos velhos fazendeiros, uma caixa com muitas garrafas de cachaça velha. Pinga de boa qualidade, tipo artesanal, de tampa de rolha, sem rótulo.  Um verdadeiro tesouro enterrado!

Eram garrafas transparentes e finas, algumas quebraram no manuseio, deixando um forte odor de pinga pela casa.  Duraram anos na minha casa, primeiro porque meus pais não bebiam muito e quando o faziam era um vinho tinto e seco.

Mas o pior foram os cachaceiros irresponsáveis, que logo ao ver as garrafas preciosas quiseram desfrutar da boa e gratuita caninha.  Pela primeira vez vi meu generoso pai dizer não, de cara feia.  Não era um desplante?

 

> José Roberto Fourniol Rebello é formado em direito. Atuou como juiz em comarcas cíveis e criminais em várias comarcas do estado de São Paulo. Nascido em São Paulo, vive em São José dos Campos desde 1964, atualmente no Jardim Esplanada. Participou do movimento cultural nascido no município na década de 60.

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