Foto / Pixabay

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Na manhã daquele sábado sonolento eu conversava na esquina com o Tavares, sobre suas incursões na pecuária por terras mineiras, quando um sujeito passou arrastando as Havaianas brancas adornadas, nas forquilhas, pela bandeira do Brasil.

Olhei com o rabo do olho e, pelo tique dos dedos parecendo contar dinheiro, vi que se tratava de João Polenta, conhecido morador do bairro e assíduo frequentador do Bar do Ceará, uns 50 metros à frente.

Com caminhar lento e olhar vago, manteve-se na calçada contrária à do boteco onde entortou o caneco um tempo atrás. Dessa vez, apenas acenou para os amigos do outro lado e seguiu resoluto. Achei-o triste. O Tavares também.

Mais adiante João atravessou a rua, entrou no açougue e voltou, agora pela calçada do boteco. Em frente ao bar onde deu o vexame [leia aqui], conversou rapidamente com alguém e veio em nossa direção, devagar e cabisbaixo. Segurava a mistura do almoço.

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Já próximo, Tavares, preocupado com a macambuzice daquele também seu conhecido, perguntou, brincando: por que tanta tristeza João, derramou o leite ou morreu a bezerra? O homem parou e se enturmou.

Contou para os nossos ouvidos atentos e curiosos que um fato acontecido 40 anos atrás tinha dado de atormentá-lo; que, por isso, passou a ter pesadelos e desassossego. Tavares se condoeu e se propôs a ajudá-lo, mas ele tinha que dizer o que lhe tirava o sono. E João se abriu.

Dias antes de beber até não parar em pé, obrigando o amigo Zé da Rosa a levá-lo para casa, João caiu na asneira de contar uma particularidade do seu passado numa roda no bar. Isso, claro, depois de beber umas e outras.

Revelou que quando moço refestelara-se com um picadinho de gambá regado a cerveja e cachaça, comilança da qual participou com amigos na zona rural de Carrancas, onde morava quando moço.

Depois de dar detalhes da façanha, de como o bicho foi abatido, limpo e cozido, o boca aberta teve um grilo colocado na cabeça. Desde então não dormiu direito. Com boa dose de malvadeza, o dono do bar aproveitou-se da simplicidade e pouca instrução do falante interlocutor para lhe meter medo.

Matar animal silvestre é crime e você corre o risco de ser preso, sabia João? –disse-lhe, disfarçando uma piscadela marota para os demais ouvintes da proeza.

João tentou remediar, sem nada adiantar. Admitiu ter comido o gambá com arroz e farinha, mas eximiu-se da morte do animal, que atribuiu ao Perruela, amigo do grotão a desfrutar do sono eterno há dois anos, graças a uma picada de cobra.

O desfecho da história o inquietou ainda mais quando ouviu de um frequentador do lugar, em tom intimidatório, que não se preocupasse, pois, caso o juiz o condenasse pela morte do gambá, não lhe faltariam cigarros na prisão.

Depois disso, sempre que ia molhar o bico no Bar do Ceará, que frequenta há 25 anos, alguém lhe imputava o crime que ele jura não ter cometido. “Eu não matei nenhum gambá!”, reagia bravo.

A aporrinhação avolumou-se a ponto de João sonhar com a polícia batendo à sua porta por causa de um gambá que comera no tempo do onça. Tinha medo que alguém o denunciasse por ter dado com a língua nos dentes numa conversa de boteco.

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Ao fim da narrativa, Tavares, advogado em fim de carreira muito conhecido nos fóruns do Sul de Minas Gerais, não se conteve e riu, para em seguida tranquilizar o apreciador do malcheiroso animal.

– João, o que os seus amigos querem é te aborrecer. Naquela época o que você fez não foi crime e, se fosse, depois de tanto tempo, estaria prescrito. Eu mesmo comi muito tatu na roça, ora ensopado, ora frito. Não perca o sono por isso. Quando falarem, não ligue.

Com isso Tavares tirou um fardo das costas do pobre coitado, que agradeceu com o fanho característico, deu alguns passos em direção à sua casa, virou-se e disse:

– Doutor, o gambá que eu comi era melhor do que o seu tatu e do que esse bife aqui ó! –exibindo a sacolinha do açougue.

Mais alentado e feliz, afastou-se devagarinho cantarolando: “Com a marvada pinga é que eu me atrapaio / Eu entro na venda e já dou meu taio…”

 

> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.

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