Caro(a) leitor(a), desculpe falar tanto em mídia aqui nesse espaço. Mas não tem como ser diferente, afinal as mudanças nessa área têm sido tão rápidas e impactantes que a gente precisa discutir o assunto e mostrar o que é uma coisa e o que é outra coisa. Aliás, esta é uma das “missões” que o SuperBairro assumiu desde sua criação, em março do ano passado.
Hoje vamos falar dos tais podcasts, que invadiram as mídias sociais para escandalizar, bombar, “memerizar”, assustar, mentir, mas quase nunca informar. Portanto, a resposta à pergunta do título, é direta: não, quase nunca podcast é jornalismo. Ainda mais quando o podcast é feito por atrizes/atores, músicos/músicas, ex-jogadores de futebol, ex-BBBs e subcelebridades em geral.
Também não é jornalismo quando é feito por jornalistas pouco atentos à ética da profissão e mais interessados em ganhar likes e acumular seguidores em busca da chamada monetização, ou seja, ganhar dinheiro escandalizando as pessoas.
Sobram os podcasts sérios, produzidos por jornalistas e outros profissionais que integram equipes competentes. Esse pessoal faz parte do menu de atrações de portais de notícias e veículos de comunicação tradicionais que passaram a distribuir seus conteúdos online.
Fora isso, podcast é um dos absurdos surgidos com a facilidade atual de produzir conteúdo –sério ou não sério– e fazer isso chegar até as pessoas.
O que é podcast
Já que você se interessou pelo assunto, vale a pena saber mais um pouco sobre o que é e como surgiu o podcast. Em pesquisa no Google, descobri que o primeiro podcast de que se tem notícia apareceu em 2004 –tem 18 aninhos, ou seja, já é maior de idade– nos Estados Unidos, quando o ex-VJ da MTV (sigla do canal da TV paga “Music Television”) e o desenvolvedor de softwares Dave Winner criaram o programa “iPodder”.
A novidade foi os usuários poderem baixar transmissões online para seus iPods, como são conhecidos os dispositivos de reprodução de áudio. Portanto, podcast é a junção das palavras iPod e broadcast, o termo em inglês para definir uma transmissão de rádio.
Criado inicialmente como um programa de rádio, o formato evoluiu e a maioria dos podcasts ganhou imagens. Hoje, são armazenados no Youtube e transmitidos nas mídias sociais como programas de TV. Ganharam o nome de vodcast, que não é muito usado. As pessoas preferem chamar tudo pelo mesmo nome: podcast.
De boas intenções…
Como você acabou de ver, o podcast não surgiu para ofender ninguém. O formato é adequado principalmente para ser uma espécie de coluna digital sobre um assunto específico. Por exemplo: empoderamento feminino, males do tabagismo, causa animal, comentários sobre política, esporte, literatura, música e outros assuntos que possam interessar a grupos específicos de seguidores e fidelizar as pessoas em torno dos temas.
Até aí, tudo bem. Porém, uma invenção pode surgir de uma necessidade legítima e começar por um uso bem-intencionado, mas depois de um tempo degringolar. Um exemplo disso que me vem à mente é o avião, desenvolvido pelo brasileiro Santos Dumont nos primeiros anos do século 20 para ser um meio de transporte e uma atração para aventureiros, mas acabou sendo usado pouco tempo depois na Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918.
Fala-se que a transformação dos seus adorados aviões em máquina de guerra –e de morte– teria sido um dos motivos do suicídio do inventor. Há controvérsias sobre isso, mas tudo é possível.
Ou seja, “de boas intenções, o inferno está cheio”.
Já viu seu “lixocast” hoje?
A guerra por audiências sempre maiores, que aumentam o faturamento e chegam a enriquecer alguns dos seus responsáveis, tem sido, mais ou menos como foram os aviões nas guerras, o motivo de os podcasts e formatos parecidos serem hoje um dos maiores “lixos” da história das mídias sociais.
A receita do “lixocast” –inventei este nome agora– reúne mais ou menos os seguintes ingredientes:
– Apresentadores de passado nebuloso, não muito recomendável, ou simplesmente irrelevante, transformam-se em personagens criados sob medida para escandalizar o público. Esse objetivo é alcançado por meio de palavrões vomitados sem parar, aparência desleixada, ar de revoltado, pose de livre-pensador e imagem de destruidor de reputações alheias. Não se engane: ninguém nos podcasts é absolutamente ignorante ou repulsivo. Essas características podem ser de nascença nos apresentadores, mas são radicalizadas por eles em busca de maiores audiências.
– O segundo ingrediente são os convidados. É fundamental que seja gente que jogue o jogo como deve ser jogado, gente disposta a tudo para criar polêmica, expectativa, curiosidade, ódio, prazer quase sexual, em busca de maiores audiências e, em consequência, de mais grana no bolso. Detalhe: gente que quer levar mensagens verdadeiras e úteis, e que pretende ser levada a sério, deve passar longe da maioria dos podcasts.
– O assunto adequado é o terceiro ingrediente. Têm que ser coisas que te deixam ruborizado –vermelho de vergonha– só de ouvir falar. Por isso, os temas mais comuns são os que invadem a privacidade das pessoas revelando detalhes íntimos, quase sempre de cunho sexual –verdadeiros ou não, isso é um mero detalhe–, ofensas pessoais, preconceitos ou explosões da mais pura ignorância e idiotice.
– O último componente dessa receita de sucesso é a linguagem e as expressões faciais. É importante que os olhares e gestos lembrem alguém que está quase a ponto de sofrer um surto e despejar os maiores absurdos nos olhos e ouvidos dos seguidores. Mas a linguagem –ah, a linguagem– é a cereja do bolo. Deve ser chula, recheada de palavrões. O principal deles é a palavra “car*lho”. Meu Deus, gente que nunca falou “car*lho”, quando vai a um podcast, tem que sair disparando “car*lho para todos os lados. Outro dia vi a deputada federal bolsonarista Carla Zambelli (PL) falar “car*lho, velho”, “pqp” e sair do estúdio dizendo “vou mijá” em meio a uma discussão. Como se a sua boca fosse suja daquela maneira o tempo todo. E tem mais: quem não chocar o ouvinte/espectador simplesmente não é mais convidado.
Não é jornalismo
Percebeu como funciona a maioria dos podcasts que estão hoje nas mídias sociais? Dane-se o conteúdo, a informação correta, a objetividade, as fontes de informação, o clima agradável para quem quer se divertir de forma saudável. Dane-se tudo. O importante é que o programa seguinte choque os seguidores ainda mais que o anterior. Vale falar absurdos sobre nazismo, Holocausto, racismo, homofobia, minorias, pessoas com deficiência… vale até “entrevistar” um presidente da República como se ele fosse um desses “manos” da vida.
O alerta mais importante é o seguinte: isso não é jornalismo. Pode ser entretenimento, humorismo, “mundocanismo”, show de horrores. Mas jornalismo não é. Jornalismo é feito por jornalistas, normalmente com liberdade para exercer a profissão. A missão dos jornalistas é informar, comentar, analisar, interpretar os fatos para o público consumidor de informação.
É claro que nem todos os jornalistas são sérios ou compromissados com a verdade. Este é um tema para uma outra coluna: a lavação de roupa suja. Também é claro que informação correta não precisa ser chata e apresentadores desses programas não precisam ser excessivamente sóbrios, mal-humorados e antipáticos. Jornalismo também pode ser uma espécie de show, desde que mantendo o compromisso com o conteúdo e o respeito com os convidados e com o público.
Enquanto os podcasts de maior sucesso tiverem “car*lho” como palavra-chave, serão, no meu modo de ver, simplesmente “lixocasts”. Não confunda isso com jornalismo, pô! Ops, quase escapou um palavrão.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.