Houve um tempo em que os maiores absurdos aconteciam na telinha da TV, principalmente nas novelas, gênero em que o Brasil se tornou especialista –e até exportador–, junto com o México e outros países latinos. Desfilavam pelas mentes aturdidas de mulheres –e pouco a pouco, de homens também– romances picantes, crimes inacreditáveis, mentes perversas, gente mau caráter, sacanagens sexuais.
O tempo passou e os brasileiros e brasileiras, hoje em dia, encontraram um substituto à altura da ficção novelesca. Sim, a vida passou a imitar a arte e pessoas de carne e osso expõem suas vidas sem o menor pudor, sem a menor censura, diante de nossos olhos esbugalhados e de nossas mentes estupefatas.
Vejamos alguns exemplos desse “striptease” que nos atinge ininterruptamente, noite e dia, chova ou faça sol:
– Como em uma fábula do tipo João e Maria ou Gata Borralheira, a atriz/cantora/influencer/etc. Larissa Manoela –aquela menininha da novelinha Carrossel– abre o coração para denunciar os pais malvados, que tiravam tudo dela a ponto de a garota ficar com meros 2% do fruto do seu trabalho e o casal com os outros 98%. A pobrezinha cortou os nossos corações ao dizer que precisou pedir um pix para a mãe quando quis tomar uma água de coco na praia.
– E aquela menininha frágil, sensível, quase quebradiça, a Sandy da dupla com o irmão Junior? Acredita que saiu um título no UOL –sempre o UOL– dizendo que essa criatura meiga sabe “dar aula” de masturbação e usa vibrador? Não que ela não tenha direito a tudo isso, mas poderia nos poupar desses detalhes. Credo…
– Outro dia, aquele rapaz que o Silvio Santos quis transformar em jornalista –sim, o Dudu Camargo– teve sua intimidade exposta de um modo absolutamente escatológico, nojento. Os fofoqueiros de plantão atribuíram a causa da sua demissão do circo chamado SBT ao fato de o “jornalista” ter defecado no chão, bem no centro do seu camarim, ter usado uma toalha como papel higiênico e depois deixado tudo lá, exposto à curiosidade pública. Que nojo…
– E os sertanejos, então? É um tal de cantor novinho aparecer em foto com o seu novo avião… sim, eu disse avião, eles têm aviões particulares. Sem falar nas mansões, fazendas, festas suntuosas, escândalos fenomenais. E pensar que Tonico e Tinoco cantaram por quase meio século e levavam vida humilde.
– Tem também a tal da Bruna Marquezine, moça talentosa que trabalha em TV desde criancinha. Hoje, porém, exceto pelo filme “Besouro Azul” que está entrando em cartaz, ela é mais conhecida como ex-namorada –deve ser uma das 857 desse grupo– do craque Neymar. Já notou que sempre que ela usa uma roupa nova os sites, portais, revistas e jornais saem com algo assim? “Bruna usa vestido de R$ 20 mil”, ou “Bruna vai a festa com joias avaliadas em R$ 300 mil”. Publicidade pura…
– Pensa que acabou? E essas celebridades e subcelebridades que posam em resorts, hotéis, navios de cruzeiro, praias paradisíacas e a tal da mídia se apressa em dizer que a diária custa “a partir de R$ 50 mil”, ou que a suíte onde a figura ficou “tem 600 metros quadrados”? Nem querem saber se alguém está se divertindo. Só os valores e os números…
– Está faltando mais sacanagem, não é? Então experimente entrar no UOL –sempre ele– depois das dez da noite. Você vai se deparar com banners anunciando matérias com conteúdo do tipo “fiz ménage com o casal e entrei como recheio do sanduíche”, ou “o dia em que ela entrou no dark room e se esfregou em dezenas de corpos sarados”. E por aí vai…
Depois desse desfile de absurdos, será que ainda existe quem precise da ficção das telenovelas? Nem pensar. É por isso que o gênero está em plena decadência. Nenhuma cabeça, por mais cheia de minhocas que seja, tem a capacidade de concorrer com “a vida como ela é”.
Fico pensando que o grande dramaturgo Nelson Rodrigues só passou à história como gênio porque morreu em 1980, antes desse mergulho da mídia e das redes sociais no mais puro lixo que uma sociedade pode produzir –ou inventar, porque, a bem da verdade, boa parte desse lixo é inventada para dar maior visibilidade e cliques para os seus personagens. O “Anjo Pornográfico”, título da sua biografia, seria um bobinho puritano nos dias atuais.
O problema mais visível desse show de horrores é que ele ocupa espaço junto do chamado “jornalismo sério”, as notícias importantes de que a população precisa ter conhecimento para se informar. Resultado: o lixo contamina a notícia séria e o leitor/seguidor/ouvinte/espectador conclui que tudo é lixo, que não pode acreditar em mais nada.
Pronto. Fiz o desabafo. Só me resta sugerir que você avalie muito bem onde faz o seu clique ou sintoniza a sua TV. Afinal, cada clique dado nesse conteúdo banal, chulo, mentiroso e até pornográfico indica que mais conteúdo desse tipo deve ser produzido porque dá audiência –e audiência dá dinheiro.
A novela da vida real é imbatível.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 48 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 22 anos.