Chuvas no Rio Grande do Sul são classificadas como um evento climático extremo. Foto / Ricardo Stuckert/Presidência da República

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

“Se tivermos pleno sucesso de zerar as emissões até 2050, as temperaturas poderão começar a equilibrar no próximo século, não neste.” O alerta é do pesquisador brasileiro Carlos Nobre, um dos maiores especialistas mundiais em eventos climáticos, criador do Cemaden (Centro Nacional de Monitorização e Alertas de Desastres Naturais).

Entenda por que a catástrofe no Rio Grande do Sul é um evento climático extremo: “o que acontecia uma vez a cada década, hoje ocorre a cada dois anos”. O SuperBairro republica entrevista feita pela jornalista Fabíola Sininbú, da Agência Brasil, publicada originalmente no último dia 9.

Carlos Nobre, criador do Cemaden, prevê: “Em médio prazo, uma década, [teremos que] buscar soluções para remover mais de 3 milhões de brasileiros que moram nessas áreas de altíssimo risco”. Foto / Divulgação
Desde o final de abril, o Brasil assiste atônito às imagens das águas que dominam cidades e levam vidas no Rio Grande do Sul. Expressões como catástrofe socioambiental, emergência climática, adaptabilidade e resiliência dominam os noticiários e passam a integrar o vocabulário de autoridades e da população brasileira, na busca por explicações e soluções para os eventos climáticos extremos.

Referência mundial para estudos ambientais e mudanças climáticas, o meteorologista brasileiro Carlos Nobre explica, em entrevista exclusiva à Agência Brasil, o que são os eventos climáticos extremos e por que a situação no Rio Grande do Sul foi classificada dessa forma.

Agência Brasil – O que é um evento climático extremo?

Carlos Nobre – É quando você tem um evento meteorológico que sempre aconteceu, por exemplo, chuvas mais intensas, prolongadas, de grandes volumes. Outro evento extremo pode ser uma seca muito intensa, pouquíssimas chuvas, seca longa, ou ondas de calor com temperaturas passando muito da média. Isso sempre aconteceu na natureza, são fenômenos naturais. Agora esses fenômenos estão se tornando muito mais frequentes. O que acontecia uma vez a cada década, hoje ocorre a cada dois anos ou até a cada ano, e batendo recordes.

Então, além de se tornarem mais frequentes, são fenômenos mais intensos, como é o caso das chuvas no Rio Grande do Sul, que bateram todos os recordes. Nunca, mais de 60% do território gaúcho mostrou um volume de chuva maior que 800 milímetros. Os dados mostram que, em menos de 15 dias, choveu o mesmo que em cinco meses em todo o estado e a previsão é de uma nova frente fria chegando com mais chuvas. Não é o mesmo volume que vimos na semana passada [entrevista publicada originalmente em 9 de maio], mas os níveis dos rios continuarão altos e a população das áreas baixas vão continuar enfrentando alagamentos.

Isso está acontecendo em todo o mundo. Então, não é algo raro, que vai acontecer a cada cem anos, não é um fenômeno extremo raríssimo. As mudanças climáticas –devido ao aquecimento global causado por gases do efeito estufa que lançamos na atmosfera– são a razão para que eventos extremos estejam se tornando mais frequentes e batendo recordes.

O que mudou na relação do homem com o planeta que fez com que chegássemos a esse ponto?

Foi exatamente o que chamamos de aquecimento global de origem humana. Quando olhamos a história de bilhões de anos do planeta Terra, já tivemos –mais de 200 milhões de anos atrás–, um evento de vulcões e terremotos que lançou tanto gás carbônico na atmosfera que a temperatura ficou muito mais alta e foi uma das causas da extinção de muitas espécies.

Nós já tivemos isso como fenômeno natural, mas desta vez não é nada natural. Praticamente, quase 100% do aumento desses gases do efeito estufa –que impedem a Terra de perder calor com mais rapidez e eficiência–, é resultado da queima de combustíveis fósseis –o petróleo, o carvão, o gás natural– e de emissões devido ao desmatamento, que responde por cerca de 12% das emissões; somado à agricultura, que chega a cerca de 25% das emissões. A produção industrial também emite.

Já aumentamos em 50% a concentração de gás carbônico –dióxido de carbono; aumentamos em quase 150 vezes a quantidade de metano, que é um gás muito poderoso para aquecer o planeta. E o planeta mais quente tem mais evaporação de água nos oceanos, e você cria os eventos meteorológicos extremos, eventos oceânicos mais extremos, como os três El Niños mais fortes do registro histórico (1992/93, 2015/16 e 2023/24). Todos os oceanos estão mais quentes. Então, essa é a causa de estarmos quebrando esses recordes em todo o planeta e no Brasil também.

É possível reverter o aquecimento global?

Reverter o aquecimento global se torna praticamente impossível, porque o próprio metano tem um tempo pequeno de residência na atmosfera, de 9 a 11 anos. Reduzir as emissões de metano seria muito importante, porque o metano é muito poderoso. O metano que tem na atmosfera responde por cerca de 0,5°C do aquecimento. Então, é muito importante reduzir o metano, porque podemos fazer a temperatura não subir mais e talvez até reduzir, mas é um enorme desafio.

Uma grande parte da emissão de metano vem da agricultura e, principalmente, da pecuária. O boi tem a fermentação entérica, que é a fermentação da grama que ele come, que produz metano. Uma série de outras atividades também produz metano. Ele compõe grande parte do gás natural e, na produção, muitas vezes ele vaza para a atmosfera. Já o gás carbônico fica, em média, 150 anos na atmosfera. Cerca de 15% do gás carbônico que entra na atmosfera hoje vai continuar mil anos lá. E o óxido nitroso, que é outro gás superpoderoso do efeito estufa, também ficará mais de 250 anos. Tem tanto gás na atmosfera que, mesmo zerando as emissões, o aquecimento continua. Se tivermos pleno sucesso de zerar as emissões até 2050, as temperaturas poderão começar a equilibrar no próximo século, não neste.

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E o que será necessário para as pessoas sobreviverem ao longo de todo esse tempo?

Não há a menor dúvida de que esses eventos, que já estão acontecendo, não têm volta. As emissões continuam aumentando, e existe até grande probabilidade que o aumento da temperatura ultrapasse 2°C e não fique em 1,5°C. A busca por soluções de adaptação não é mais um plano futuro, é um plano passado, que já devia estar ocorrendo no mundo inteiro, com muito mais rapidez e eficiência. Não estamos vendo uma busca por adaptações para eventos que já estão acontecendo. O exemplo é esse, no Rio Grande do Sul. Os países desenvolvidos estão gastando mais recursos em adaptação, muito em infraestrutura, preparando os portos para o aumento do nível do mar, mas nem assim estão buscando o que é necessário.

Nos países em desenvolvimento, não vemos quase nenhuma adaptação. A gente está vendo toda a infraestrutura do Rio Grande do Sul afetada, as pontes derrubadas pela enxurrada dos rios, as casas todas inundadas. No Brasil, temos pouquíssima adaptação. Vemos mais os eventos de chuva, mas também não estamos adaptados para os eventos de seca. Batemos recorde com secas mais fortes do Amazonas e do Cerrado, em 2023 e 2024. A agricultura brasileira não está adaptada para eventos extremos. Veja aí a perda de produção de arroz que o Rio Grande do Sul teve com a chuva, e as secas são o principal fator de perda de safra. Então, não tem desculpa, precisamos não só reduzir as emissões, mas acelerar muito a adaptação.

O que é necessário ser feito?

Temos que tornar as populações muito mais resilientes. No caso do Brasil, o Cemaden [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais] já vem fazendo estudos, e milhões de brasileiros não podem mais continuar morando em áreas de risco, na beira do rio, em encostas muito íngremes. E também precisamos aperfeiçoar muito os sistemas de alerta.

Com as previsões meteorológicas é possível anunciar um evento de extremo climático com dias de antecedência, como o Cemaden alertou o Rio Grande do Sul e a Defesa Civil. Mas nós precisamos fazer com que esses sistemas de alerta estejam em todos os lugares de risco. O Cemaden está concluindo um estudo que aponta mais de 1,9 mil municípios com áreas de risco de deslizamentos, inundações e enxurradas. São áreas onde devem ser instalados sistemas de sirenes como já temos na região serrana do Rio de Janeiro, por exemplo. Lá, a população já está mais capacitada, há locais para onde deve se deslocar quando as sirenes tocam. Então, isso precisa ser feito em milhares de cidades brasileiras. Somos muito mal preparados para informar a população sobre eventos extremos.

No Brasil, quase duas mil cidades são avaliadas com riscos, então a nossa classe política tem que fazer como tem feito nesses dias, quando o Congresso aprovou à jato a transferência de recursos para o Rio Grande do Sul. Os políticos estaduais têm que aprovar também à jato a criação de sistemas de alerta em quase dois mil municípios com enormes áreas de risco. Isso demanda centenas de bilhões de reais que precisam ser investidos para melhorar a ação da Defesa Civil e nós temos que fazer isso para ontem. Em médio prazo, uma década, buscar soluções para remover mais de 3 milhões de brasileiros que moram nessas áreas de altíssimo risco.

 

*Texto adaptado pelo SuperBairro para republicação. Todo o conteúdo original foi mantido.

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Quem é Carlos Nobre

Carlos Afonso Nobre é um cientista do sistema terrestre do Brasil. Obteve graduação em engenharia eletrônica pelo Instituto de Tecnologia de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos (SP), em 1974; e doutorado em meteorologia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), EUA, em 1983.

Iniciou sua carreira profissional em 1976 no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), como assistente de pesquisa. Foi pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) por mais de 30 anos, onde ajudou a estabelecer um moderno centro de pesquisa de previsão do tempo e do clima (Cptec-Inpe), e foi seu diretor de 1991 a 2003. Criou em 2008 o Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Inpe.

Entre 2011 e 2014, foi secretário nacional de Política de I&D do Ministério da Ciência e Tecnologia, onde criou, em 2011, o Centro Nacional de Monitorização e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

Atualmente, é membro do Joint Steering Committee (JSC) do Programa Mundial de Pesquisa Climática (WCRP) e do Conselho Econômico de Saúde Planetária da Fundação Rockfeller. É membro da Academia Brasileira de Ciências, da Academia Mundial de Ciências (TWAS) e membro estrangeiro da Academia Nacional de Ciências dos EUA.

Fonte: Linkedin (condensação)