“Noventa milhões em ação / Pra frente, Brasil / Salve a Seleção!”
Lembra desse refrão? Foi o “hino” da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1970. Realmente éramos 90 milhões de pessoas e realmente queríamos homenagear os nossos craques que foram desfilar “o melhor futebol do mundo” no México.
Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo e Gérson; Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivelino. Esses onze nomes estavam na ponta da língua de qualquer brasileiro que “honrasse as calças”, como se dizia na época.
Do time titular do Brasil, três jogavam pelo Santos, dois pelo Cruzeiro e um por Botafogo, Corinthians, Flamengo, Fluminense, Grêmio e São Paulo. Fácil de memorizar, né?
O “escrete canarinho” de 1970, como também se dizia na época, foi o auge da “pátria de chuteiras”, como o fanático torcedor do Fluminense, o genial dramaturgo Nelson Rodrigues, se referia à Seleção. Depois de bater na trave em 1938 com um terceiro lugar e em 1950 com um segundo lugar, o futebol refinado do Brasil começou a colecionar estrelas na camiseta a cada título mundial que conquistava, em 1958, 1962 e, finalmente, no tricampeonato de 1970.
Eu tinha 11 anos de idade quando a Seleção disputou as eliminatórias para a Copa, em 1969. Como um rolo compressor, os craques brazucas passaram por cima de todos os adversários, terminando a campanha que classificou o Brasil com uma vitória suada, 1 a 0, com direito a gol de Pelé aos 23 minutos do segundo tempo, sobre o Paraguai em um Maracanã abarrotado por exatos 183.341 torcedores. É até hoje o maior público pagante da história do futebol mundial.
Aí veio a Copa, vieram seis jogos memoráveis no México, com seis vitórias brasileiras, 19 gols marcados e 7 gols sofridos. A taça Jules Rimet era conquistada definitivamente pelo Brasil. Anos depois, seria roubada e derretida, mas isso já é outra história…
Lembro-me como se fosse hoje, eu já aos 12 anos, junto com toda a família –mais de 50, sem dúvida –, assistindo à final contra a Itália na casa dos meus avós paternos, todos sentados no chão ou onde podiam, com os olhos grudados no aparelho de TV em cores que estava sendo estreado naquele dia em um Brasil que ainda era quase todo em preto e branco.
Logo depois dos 4 a 1, com direito a gols maravilhosos de Pelé, Gérson, Jairzinho e Carlos Alberto, fora o baile, um dos meus tios desparafusou a tampa do capô dianteiro do seu Fusca verde, creio que puxado para o verde-musgo, onde alguns sobrinhos, não me lembro quantos, se aboletaram para desfilar pela rua Marechal Deodoro, a principal de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, em ritmo de Carnaval com direito à marchinha dos “90 milhões em ação”, além de muito confete e serpentina.
Cinquenta anos depois
Terça-feira, 16 de novembro de 2021, bar Espetinho da Ema, avenida Heitor Villa-Lobos, na Vila Ema, região do SuperBairro. Por volta das 17h, combino com o amigo Edinho, um engenheiro do Inpe da melhor qualidade, para assistirmos no bar ao jogo Argentina X Brasil, fora de casa, pelas Eliminatórias da Copa do Catar em 2022.
Bar todo preparado com seus três monitores –dois gigantes e um normal– para captar as melhores imagens do maior clássico sul-americano.
–– Vai antes pra reservar uma boa mesa. Chego por volta das sete… Ah, o Leon não vai poder ir –explica o Edinho, referindo-se a um amigão belga, aposentado do Inpe, que se orgulha de saber tudo de futebol –e de quase todas as outras coisas que existem no mundo.
–– Acho que não vai ter muita gente, sei lá, umas 40 pessoas… mas tem razão, é bom pegar uma mesa bem localizada –respondo.
Resumindo. Às 20h30 começa o grande clássico. Edinho e eu devidamente acomodados junto à mesa de madeira boa, em cadeiras confortáveis, cada com a sua cervejinha preferida nas tulipas. Olho ao meu redor. Só eu, Edinho, Leandro e seu filho Gabriel, donos do bar, o gerente Rogério, um ou dois garçons e o churrasqueiro que prepara os espetinhos com maestria, víamos o jogo.
Cadê os outros?!?! Ora, os outros… havia mais algumas mesas com clientes, a maioria delas na calçada fora do bar e, adivinhe, ninguém querendo ver o jogo. Eu disse ninguém, “torcida brasileira”, como berravam os narradores esportivos lá por volta de 1970.
Moral da história: ninguém mais quer ver a Seleção Brasileira. Ninguém se dá a esse trabalho. E por que será? Vamos tentar entender algumas razões para o desembarque do torcedor em relação à sua Seleção:
– Primeiro: a Seleção não é mais do brasileiro. Juro, vários jogadores eu nunca vi “mais gordos”, ou já os vi, mas me esqueci deles. Ou seja, os brasileiros eram tão estranhos para mim quanto os argentinos. Comparando com 1970, eu conhecia de cor e salteado todos os jogadores, titulares e reservas, e ainda alguns reservas dos reservas.
– Segundo: como perguntaria o velho Globo Repórter, de onde eles vêm, se alimentam de quê, como se reproduzem? Lá em 70, os craques eram os mesmos que a gente via todo fim de semana nos clubes brasileiros mais tradicionais e populares. Hoje, nem dá pra dizer onde os nossos “meninos” jogam sem enrolar a língua e tropeçar nos nomes.
– Terceiro: eu disse craques? Humm… aí é que mora o perigo. Estão todos nivelados por baixo, não chegam aos pés dos monstros sagrados de 70 –Pelé, Rivelino, Gérson, Tostão e companhia. Não chegam aos pés nem dos craques mais recentes, como Romário, Zico, Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo etc. etc.
– Quarto: ué, mas pelo menos eles têm garra, não é? Discutível, muito discutível. Nos quase 100 minutos do jogo contra a Argentina predominou um futebol burocrático, até entediante. Por parte das duas seleções, diga-se. Um confronto Brasil X Argentina, que dava quase rompimento das relações diplomáticas no passado, agora é uma espécie de amistoso insosso. Até o torcedor argentino, que antes queria devorar literalmente os adversários brasileiros, agora parecem dispersos, entediados, caladões.
– Quinto e último: se no futebol do passado o jogador brasileiro se consagrava quando era convocado para a Seleção, hoje em dia os jogos com “a amarelinha”, como diz o Zagallo, são apenas uma obrigação contratual. Onde o bicho pega mesmo é nos seus clubes, que é também onde a grana rola solta.
“Éééé, amigoooo…”, diz o Galvão Bueno, que até outro dia também ganhava mais de R$ 1 milhão por mês na Rede Globo. A realidade que alguns não querem enxergar é que o Brasil se tornou uma espécie de fazenda de criação de jogadores de futebol com o claro objetivo de exportá-los, como se faz com a soja ou com a carne bovina.
Aqui no Brasil ficam aqueles não exportáveis, os ainda imaturos e os que já gastaram o fôlego e os músculos lá fora e querem terminar a carreira mais perto de casa. Creiam ou não, o futebol disputado hoje no Brasil é uma espécie de série D em relação ao futebol da Europa.
Temos hoje 212,6 milhões de brasileiros e menor interesse pelo futebol da nossa Seleção do que tinham os famosos 90 milhões em ação.
–– Fecham-se as cortinas e termina o espetáculo! –dizia, com seu sotaque acaipirado, o grande narrador de rádio Fiori Gigliotti. No bar, depressa foi cada um pro seu lado. E o último a sair apague a luz.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.