Eu o chamava de “seu” Zé. Conheci-o de longa data graças à proximidade com os filhos Wanderley, Marina, Didito, Maria Helena… frequentava sua casa no Jardim Paulista, perto do antigo Zimbreira, e no sítio São João Batista, em Jambeiro, desde que vestia calça boca de sino e usava salto carrapeta.
Da família, granjeei amizade. Não porque merecesse, mas por causa da generosidade de cada um dos nove filhos, herança de “seu” Zé e de sua mulher, dona Nair, ou Naí, como ele a chamava.
Ah, Nair! Mulher muito especial. Vivia o tempo todo aconselhando e mostrando rumo e prumo para a filharada. Preocupava-se mais com a prole do que com ela mesma.
A lembrança daquela mulher altiva, olhos claros e vivos, pegando um graveto em chamas no fogão a lenha para acender o palheiro, não me sai da cabeça. “Quer dar uma pitada?”, perguntava, exibindo o cigarro de palha aceso. E eu dava boas baforadas. Cristalina como água de bica, esta imagem até hoje inunda-me os olhos.
De tão marcante, também não esqueço o dia em que, na roça, dona Nair recomendou a um dos filhos –não me lembro qual– colher ervilhas para o almoço. Fui junto. Colhemos, debulhamos e comemos ervilhas frescas, preparadas numa panela de ferro com um tico de manteiga, uma pitada de magia, alho e sal. Uma delícia! Nunca mais experimentei igual.
Sobre “seu” Zé, marcaram-me muitos feitos e fatos, mas um em especial ficou gravado para sempre. Certo dia meus filhos Lucas e Carlos Júnior, então com três e cinco anos, primeira vez ante muitas novidades na roça, correram tanto atrás de um porquinho recém-nascido que o pobre animal morreu.
Soube depois por outra pessoa, testemunha de tudo, que o bicho pereceu por estresse provocado pela carreira dada pelos dois meninos da cidade, e que o anfitrião não se opôs ao pega e nem ralhou com as crianças para me privar de chateação.
Naquela época eu não tinha noção da estirpe moral e cultural daquele matuto de mãos calejadas. Um sábio, sem saber ler nem escrever. Não duvido que, entre tantas, sua missão aqui foi fazer ver a todos que Deus escolhe os mais puros e despojados para manifestar sua grandeza e plenitude.
No livro em que a jornalista Lídia Bernardes descreve as trilhas de tão lídimo caipira, o ex-presidente da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, Antônio Gervásio de Paiva Diniz, define-o como “um artista de valor incontestável, um homem simples que faz de sua vida um acervo de cultura e poesia”.
Quando começaram as rodas de viola na Casa de Cultura batizada com seu nome, tive a felicidade de colaborar empunhando um microfone para animar e apresentar os artistas. Gente que acalentava o sonho de um dia gravar seu disco, deixar o anonimato e quem sabe ganhar dinheiro tocando e cantando música de nossa raiz.
Eram duplas, trios e grupos de todos os cantos da cidade e do Vale do Paraíba. Talentos de variados quilates. Alguns com boa rodagem; outros, inexperientes; de combinação de vozes ou afinação carentes.
Pois, “seu” Zé fazia questão de tratar a todos sem distinção. Recomendou-me cuidado para não preterir nem infligir constrangimento a ninguém, mesmo ciente de que um ou outro artista não agradava plenamente o exigente público, ali com suas predileções. Sob a batuta daquele homem miúdo e decidido, fazia-se justiça. Todos tinham vez e voz.
Na abertura dos shows, ele rezava e pedia a proteção divina para os violeiros. Naquele instante ficava nítido para mim que ali estava um homem a mostrar –sem se exibir– que a felicidade estava em ser simples, humilde, bom, amigo…
Já se vão quase quatorze anos que Deus nos privou do amigo José. Por certo que precisou de alguém tarimbado para abrir as rodas de viola, cantar e proporcionar muito mais alegria para os seus eleitos no paraíso, entre eles a Naí, de quem “seu” Zé deve gozar de longo e terno abraço.
Este homem de cuja amizade privei e sobre quem ouso rabiscar estas palavras não é outro senão José Alves de Mira, o inesquecível Zé Mira. Tropeiro, contador de “causos”, folclorista, catireiro, mestre de congada e de folia de reis, autor, compositor, artista nato merecedor de todas as louvações e aplausos. Enfim, nosso caipira maior, aqui a acender em mim a pira da saudade.
> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.