Outro dia falei aqui sobre a alta de preços dos alimentos, que acontece aos pouquinhos e quando a gente percebe, de pouquinho em pouquinho chega-se a um absurdo.
Penso que o mesmo acontece com a violência patrocinada pelo Estado em nome do combate à criminalidade e à proteção do cidadão. No último fim de semana aconteceu de novo, “coincidentemente de novo” no estado do Rio de Janeiro. Desta vez o Bope, de novo o Bope (Batalhão de Operações Especiais) deixou um saldo de oito cadáveres durante operação no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo.
Assim como acontece com a alta do preço dos alimentos, somam-se mais oito mortes provocadas por policiais e nenhuma morte provocada pelos bandidos durante a operação. Quando essas oito mortes se juntam a outras mortes ocorridas em outras operações, os números são assustadores. Eles mostram uma espécie de “esquadrão da morte” com direito de atirar antes e perguntar depois.
A execução de cidadãos em operações policiais –criminosos ou não, são cidadãos– tem sido típica das forças policiais do Rio de Janeiro. Mas não se trata de uma exclusividade carioca.
No dia 31 de outubro, na cidade mineira de Varginha, a polícia conseguiu matar todos os 26 integrantes da quadrilha de uma nova modalidade de crime, bastante violenta, conhecida como “novo cangaço”. Nenhuma vítima do lado das forças policiais, apesar de a operação ter sido descrita como um “confronto” entre polícia e bandido. Também nenhum criminoso para ser interrogado e ajudar a desvendar esse tipo de crime.
Além de acontecer em todo o país, embora com menor frequência que no Rio de Janeiro, o problema também não é recente. Os mais velhos ainda irão se lembrar da tragédia ocorrida no dia 2 de outubro de 1992, em São Paulo, que ficou conhecida como “Massacre do Carandiru”.
Naquele dia, mais de 300 policiais militares entraram em “confronto” com presos do pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru, onde estaria havendo uma briga entre detentos. Quando a operação terminou, 111 presidiários estavam mortos e 130 feridos. Entre os policiais, nenhum morto e 23 feridos.
O que torna o Rio de Janeiro um estado emblemático quando se trata de violência policial é que lá esses “confrontos” acontecem com muito maior frequência por uma série de razões:
– No estado do RJ, principalmente em sua região metropolitana, convivem, quase no mesmo espaço, o crime organizado, as milícias e as forças policiais;
– Também estão geograficamente próximas as favelas –que alguns chamam, eufemisticamente, de comunidades– e os bairros urbanizados;
– A frequência dos casos de corrupção policial parece ser estatisticamente muito maior que em relação a outros estados;
– Parece existir promiscuidade nas relações entre parte da classe política e parte das forças policiais, concorrendo para a impunidade na apuração dos casos.
Licença para matar?
Boa parte da sociedade costuma achar que a abordagem desse tipo de assunto é uma defesa dos bandidos, esses que tiram a vida de cidadãos de bem com frieza. E por isso quem pensa assim costuma também adotar a velha tese de que “bandido bom é bandido morto”.
Mas a coisa não é bem assim. No meu modo de ver, trata-se de separar o que os criminosos fazem daquilo que o Estado deve fazer. Você já deve ter ouvido dizer que, em uma sociedade organizada, só o Estado deve ter o monopólio da força.
O pensamento é do sociólogo alemão Max Weber. Segundo ele, o uso da violência legitima é reconhecido pela sociedade e tem o objetivo de promover a ordem pública. Enquadra-se nesse caso o uso do poder de polícia. Porém, o monopólio da força não pode ser encarado como uma “licença para matar” à disposição das forças policiais.
Quando um policial usa uma arma no patrulhamento de rua, aquela arma é o uso legítimo da força por parte do Estado e em nome da sociedade. E vou além: aquela arma deve ser usada para proteger a todos os cidadãos.
Julga e condena?
Também faz parte do Estado moderno o direito de todo cidadão acusado de um crime receber julgamento justo. O artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, garante que o indivíduo só será privado de sua liberdade ou terá seus direitos restringidos mediante um processo legal, exercido pelo Poder Judiciário, por meio de um juiz natural, assegurados o contraditório e a ampla defesa.
E o que fazem as forças policiais quando exageram no uso da tal “violência legal”? Elas simplesmente estão acusando, julgando, condenando e aplicando a pena, ao mesmo tempo. E em muitos casos esta pena é a de morte.
Será tão difícil compreender que às forças policiais cabe garantir a ordem pública por meio da vigilância, patrulhamento, investigação, prevenção e repressão? O normal deveria ser aqueles cidadãos que violam a lei, cometendo os mais diversos crimes, serem detidos e encaminhados para a Justiça.
Aí sim, na Justiça, o cidadão –ele nunca deixa de ser um cidadão– será acusado formalmente, terá direito a defesa e, se condenado, cumprirá pena. Ou seja, não é o policial que tem esse poder.
É evidente que, em confronto –agora sem aspas– com um suspeito cem flagrante delito, o agente público deve defender-se. E se no confronto o infrator da lei for atingido e vier a ser morto, a ocorrência deve ser atribuída ao uso legal da força que é concedido ao policial em nome do Estado. Uso legal, sem excessos e sem vingança.
Rio, até quando?
Voltando aos casos de excesso policial no Rio de Janeiro, o que fica claro é que a sociedade fluminense não está sendo devidamente protegida pelas forças policiais. Quando se mata indiscriminadamente, em ações já taxadas pela Imprensa como extermínio, atinge-se inocentes e infratores de crimes de menor poder ofensivo.
Mas o pior de tudo é que, nesses casos, fica claro que o Estado de Direito não está presente naquela comunidade. E aí entra uma outra questão recorrente quando se discute segurança pública. “Nós prendemos e a Justiça solta”, reclama a polícia. Ora, então mude-se a Justiça, é óbvio.
A impressão que fica depois de todos esses casos de execuções “no atacado” pelas forças policiais é que alguém, em algum momento, resolveu, mesmo sem permissão da Constituição, aplicar a pena de morte no Brasil.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.