A pitangueira que escolheu meu quintal pra viver é uma resiliente nata. Ela escolheu ser assim. Brotou em um canteiro colado ao muro que eu reservara para o plantio de ervas para chá, plantinhas que não exigem tanta terra para crescer. Deve ter sido coisa de passarinho. Não fui eu que a plantei lá.
Há uns oito anos, vendo a pitangueira atingir 40 centímetros de altura, decidi arrancá-la e plantar no canteiro da frente, mais apropriado.
Retirei quase toda a raiz, mas, já chegando ao fim da operação, ela se partiu e sobrou um tronquinho bem abaixo da terra. Você aí, que entende de plantação, me dê um desconto; sou jardineira de fins de semana esparsos.
A muda replantada morreu ao mesmo tempo em que o tronquinho reapareceu à luz. E foi crescendo. Convencida de que aquele lugar não era próprio, arranquei o broto, cobri com terra e esqueci o assunto.
Até ser lembrada dele novamente, pela rebrota do insistente. Desisti de arrancar e quase oito anos se passaram.
Hoje, sem rancor por tudo que a fiz passar, a pequena árvore me recompensa com frutos doces. Tão brasileira, coitada. E, sei lá porquê, me lembrou de todos nós, resilientes, que mesmo sendo afrontados, torcidos, esmagados pelos mais diferentes aventureiros, nos submetemos à sanha de governantes de mandatos esparsos como os meus fins de semana de jardinagem. Sem compromisso com o futuro de ninguém, a não ser o próprio.
A gasolina sobe? A gente aguenta, anda mais a pé e guarda o dinheiro do “bondão” pra comprar gás de cozinha, mas aguenta.
O dólar está nas alturas, mas que importância isso tem? Nunca quis ir à Disney mesmo.
Falta comida na mesa? Fazemos a dieta da polenta (ou do angu, se for nordestino) e resistimos enquanto esperamos a época de manga nas árvores plantadas pelas ruas.
O despejo bate à porta por falta de pagamento de aluguel? A gente junta as trouxas e escolhe um viaduto por aí, com desprendimento na alma. Morar bem é ostentação.
O Pantanal pega fogo? Ah, mas é tão longe daqui.
A Amazônia virou pasto? Ótimo, quem sabe se com mais espaço para criar gado o preço da carne diminui.
Importante mesmo é defender as cores do Brasil. Essa terra de gigantes, que dormem com um olho fechado e outro aberto pra não perder a passagem do caminhão de ossos.
A pitangueira do meu quintal segue firme. Absoluta, dona das próprias raízes. Também defende as cores do Brasil. As frutinhas passam do verde vivo para um tom quase branco e logo vem o amarelo. Mas segue até um tom de laranja fulgurante e suculento, caindo de madura. Tão brasileira, coitada.
O que há de azul na pitangueira são os sanhaços, que vêm e vão. Gostam da fruta e, percebi, são os responsáveis por tantas caídas ao chão que inviabilizam a colheita para a geleia. Eles bicam uma e derrubam cinco, desperdiçando o que não lhes deu trabalho para construir. O que faz a pitangueira ainda mais brasileira, coitada.
Reformas foram e vieram, hoje dona pitangueira faz as vezes de quadro vivo na janela da minha cozinha. Tão brasileira, coitada. Apegada a um lugar que tinha tudo pra dar errado, ela não desistiu nunca e, por fim, fez dar certo.
Ao contrário da pitangueira, muitos de nós, brasileiros, não escolhemos ser assim. Melhor seria ter condições dignas para crescer e frutificar, sem ter que recomeçar tantas vezes. Ainda assim, resistir é o que nos resta.
> Maria D’Arc Hoyer é jornalista (MTb nº 23.310) há 28 anos, pós-graduada em Comunicação Empresarial. Mora na região sudeste de São José dos Campos. É autora do blog recortesurbanos.com.br.