Quando falta assunto, uma goiaba pode salvar a lavoura de quem escreve premido pelo tempo.
Na quarta-feira que antecedeu a de cinzas, saí de casa para ir à Unidade Básica de Saúde do bairro onde moro disposto a fazer valer um direito de cidadão. Tinha estado lá duas vezes por igual motivo. Em vão.
Respeito e admiro o trabalho dos funcionários da UBS, alguns há tempos por lá. São profissionais abnegados, mas não fazem milagres. Como a demanda é grande e a demora é inevitável, deixei em casa minhas rabugices para evitar uma simples testa franzida.
Fui a pé e não levei o celular, que é útil, mas às vezes me incomoda. Carreguei apenas um envelope pardo com a documentação necessária para conseguir o meu objetivo. Ao sair, vejo que a Amália, minha vizinha de frente, também está saindo. Cumprimentei-a efusivamente, e segui.
Antes de alcançar a esquina lembrei-me da deliciosa crônica da Maria D’Arc, vizinha de coluna neste espaço [leia aqui]. E vendo na mente a foto/ilustração do texto, concluí –olhando para aquela goiaba fresquinha –que minha amiga tem razão. Muitas vezes, também fico emparedado pelo tempo de entregar o texto para o editor, e quando me dou conta os assuntos fugiram como os gnomos da D’Arc.
Então decidi que no caminho de ida e volta até o postinho de saúde eu só teria olhos de curiosidade. Quem sabe não capturo um duende e garanto a crônica da semana, disse para os meus botões –e segui com passos firmes como costumeiro.
Na falta de um ser mitológico, um barulhento casal de maritacas em namorico no mais alto de uma verdejante sibipiruna; ou o passar serelepe de um menino atrás de uma pipa em queda livre e desengonçada, não seria ruim, pensei. Nada!
No primeiro atendimento peguei a senha 79. Fitei o painel para ver o andar da carruagem e entrei de olho num assento para descansar os cambitos. Para minha surpresa, sentei-me ao lado da Amália –do começo desta conversa, lembra? Troquei com ela algumas palavras e não tive como deixar de ouvir os meus botões, que berravam:
–– Jornalista, olhe aí o seu gnomo.
Olhei ao redor e nada me chamou a atenção, a não ser um monte de gente atenta ao celular e um burburinho inadequado para um lugar que pede silêncio. Então, quis saber onde e me puxaram a orelha.
–– No final da fileira em que está sentado, mané!, disseram em uníssono.
Olhei. E ele estava lá, encostado na parede. Impávido, mas com o pescoço levemente arqueado sobre um livro aberto, era um colosso. Queria falar com ele, mas no tempo em que pedi uma caneta emprestada de minha vizinha, cadê o gnomo? Tinha sido chamado no painel.
Tratava-se de uma compenetrada e meiga jovem de rosto fino e cabelo curto, bem aparado. Calculei que tivesse uns 17 anos, tal a jovialidade. Mas uma discreta tatuagem no braço direito indicava que podia ter mais. E tinha.
Decidido a não deixá-la escapulir, fiquei atento para trocar com ela um dedo de prosa a fim de matar as lombrigas curiosas. E descobri que, lendo em média um livro por semana, Mariana (este o nome dela) é uma leitora voraz.
As páginas que a absorviam eram de “As brumas de Avalon”, um quatro volumes lançado em 1979 pela escritora norte-americana Marion Zimmer Bradley. A obra conta a vida de Rei Arthur e seus cavaleiros com outra perspectiva para a lenda arthuriana.
Leio desde 8 ou 9 anos. Tive incentivo de minha avó materna, com quem morei os primeiros anos de vida. Ela tinha uma estante com muitos livros e isso me inspirou a ler. O interesse continuou na escola, no ensino fundamental, onde uma vez por semana tínhamos aula numa biblioteca. Peguei gosto pela leitura e não parei mais, contou, solícita.
Saí feliz da UBS. Por ter conseguido o meu intento; e por ter conhecido a Mariana, um ponto no buraco negro da ignorância provocada também pela falta de uma política pública massiva e duradoura de incentivo à leitura.
Naquele ambiente de iguais, Mariana era diferente. Um gnomo devorador de livros.
> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.