Foto / Imbel/Reprodução

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Sou bastante interessado na linguagem comum das ruas, nas formas como as pessoas se expressam no dia a dia. Daí, gostar também dos ditados populares, como o que usei no título desta crônica, é apenas mais um passo. Como curiosidade, segue o resultado da minha pesquisa sobre o significado da frase:

“A ferradura é como se fosse um ‘salto’ (ou ‘sola’), que é colocado no cavalo para evitar o desgaste do casco. Quando o ferreiro vai colocar a ferradura ele precisa usar um cravo (uma espécie de prego) para prender a ferradura ao casco para [impedir] que ela se solte. Quando o ferreiro vai pregar a ferradura ele costuma dar algumas batidas do martelo na ferradura, fazendo com que o animal se acalme, pois isso não dói (muito) e depois de algumas batidas ele dá uma no cravo, que vai entrando no casco e prendendo a ferradura. Então ele dá uma batida no cravo e algumas batidas na ferradura… com isso o animal fica menos agressivo e o trabalho sai mais rapidamente. Por isso as pessoas usam a expressão ‘uma no cravo e outra na ferradura’, que quer dizer ‘fazer algo bom e em seguida algo ruim’.”

Pois é, este ditado frequentemente usado por gerações anteriores à atual –esta criou as suas próprias expressões– me veio à memória quando fazia a leitura das notícias dos últimos dias e me deparei com duas que se encaixam perfeitamente na história do cravo e da ferradura. As duas têm a ver com esse pessoal que nos governa.

Vamos ao exemplo de “fazer algo bom”.

O SuperBairro tem publicado detalhes a respeito do Programa Pé-de-Meia, do governo federal, que vai repassar para estudantes pobres uma espécie de mesada visando que eles comecem e terminem o ensino médio. Estima-se que essa ajuda irá chegar a cerca de 2,5 milhões de jovens em todo o país, que receberão R$ 200 por mês e, ao final dos três anos, poderá atingir até R$ 9.200.

Alguns dirão que tem muito mais estudante pobre no Brasil e o programa irá se restringir aos que vêm de famílias inscritas no CadÚnico, o cadastro do governo que credencia quem pode receber ajuda do governo. Outros dirão que R$ 200 por mês não dá para quase nada. Outros ainda recorrerão à história da meritocracia, alegando que quem quer estudar não precisa de ajuda.

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Apesar de todos esses, “mas, porém, contudo, todavia”, confesso que fiquei entusiasmado com o alcance potencial do Pé-de-Meia. E não apenas com o alcance financeiro, apesar de ter certeza de que um valor mensal, por menor que seja, rende muito nas mãos de quem não tem acesso a quase nada.

O que me deixou animado foi o exemplo que o governo federal dá com esse programa. Ele sinaliza o quanto é importante para o país que seus estudantes completem pelo menos o segundo grau. Formados, esses jovens poderão seguir para uma faculdade ou se especializarem em profissões técnicas, muito bem-vindas no mercado de trabalho. O que não dá mais é termos uma grande evasão no ensino médio no país, com muitos adolescentes terminando aos trancos e barrancos o ensino fundamental e nem sequer ingressando no primeiro ano do ensino médio.

A sinalização do governo deve ser compreendida como a mensagem de que “nós até pagamos para você frequentar a escola porque queremos que você ajude o Brasil a crescer e, ao mesmo tempo, cresça com ele”. Imagine também as famílias, orgulhosas pelo fato de os seus jovens estarem fazendo por merecer o incentivo do governo. Além, é claro, dos próprios garotos e garotas, que poderão se sentir valorizados pelo governo, família, amigos, enfim, pela sociedade.

Resumindo: fiquei fã do Programa Pé-de-Meia. O governo acertou direitinho no cravo com esta novidade.

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Agora vamos falar de fazer “em seguida algo ruim”.

Outro texto me chamou atenção já no seu título: “Exército autoriza que PMs tenham até cinco fuzis para uso particular”, diz o portal de notícias UOL. Como é que é?

É isto mesmo que você leu. Uma portaria do Comando do Exército, publicada na terça-feira (23 de janeiro) no Diário Oficial da União, autoriza policiais militares, soldados do Corpo de Bombeiros, além de funcionários do GSI (Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República) e da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) a comprar até seis armas. Desse total, cinco podem ser de uso restrito, categoria em que se encaixam os fuzis. Ah, não vamos esquecer que a mesma autorização prevê que eles poderão comprar até 600 munições por ano para cada arma.

Pegou a visão? Se pegou, me explique que raios significa um profissional da segurança pública fazer “uso particular” de uma arma? Seria poder estourar os miolos do cônjuge depois de uma discussão mais acalorada? Seria meter bala nos vizinhos que estão com o som muito alto durante uma festinha de fim de semana? Ou enfiar o cano de um fuzil no nariz do motorista com quem ele iniciou uma discussão de trânsito?

Ora essa, ou eu sou muito ignorante ou não existe esse tal uso particular de arma de fogo por PM, bombeiro ou araponga da segurança do governo federal. Treinamento? Cada força de segurança que treine os seus integrantes. Segurança pessoal? Ora, seis armas dão para armar um pequeno exército. Além disso, penso que fora do trabalho esse pessoal é tão civil quanto cada um de nós e não pode ser sua própria polícia. Lazer ou clube de tiro? Deixa pra lá, ia escrever um palavrão aqui…

Acho que, do mesmo modo que fiquei abismado com a notícia, quase todos os que souberam disso pela imprensa também ficaram. E como nesse mato tem coelho, seis dias depois, no dia 29, volto a ler sobre o assunto no mesmo UOL.

“De acordo com o Centro de Comunicação Social do Exército, a portaria 167, que regulamenta a aquisição de armas de fogo e munições por integrantes das Polícias Militares, dos Corpos de Bombeiros Militares e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, ‘terá sua entrada em vigor suspensa a fim de permitir tratativas junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública’”, diz o texto.

Continuando a leitura, fico sabendo que o recuo não tem, aparentemente, nada a ver com uma possível indignação popular, mas com a posse, nesta quinta-feira (1º de fevereiro), do ex-ministro do STF, Ricardo Lewandowski, no comando do Ministério de Justiça. Ou seja, é só uma questão de combinar melhor.

Pronto. Para cada martelada bem dada no cravo –como o Programa Pé-de-Meia–, vem um golpe desastrado na ferradura –seis armas para uso particular do pessoal da segurança.

A nós, pobres mortais, cabe ficar de olho nos acertos e nos erros desse pessoal que nos governa. E botar a boca no trombone.

 

> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 48 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 23 anos.

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