− Eu só peço a Deus que quando ficar velha eu não dê trabalho para ninguém, presa numa cama! Assim dizia impune a Tia Filoca –velha ela já era, gente, embora não a ponto de depender do cuidado alheio.
Interessante como as pessoas quando ficam maduras –e eu não me excluo– passam a soltar pérolas de pensamento que, contudo, no mais das vezes não correspondem exatamente àquilo que sentem. Às vezes, o inverso. O discurso é um, o sentimento é outro.
Na realidade, não é nem preciso ser idoso para isso. É o ser humano, contraditório por natureza, não podendo se ignorar a duplicidade da nossa mente, consciente e inconsciente. Não fosse isso, não haveria lugar para o trabalho essencial de psicólogos e psiquiatras.
Volto à Tia, eu sempre compreendi essa fala com um grito surdo de socorro ao Senhor:
− Eu não quero sofrer quando vier a minha passagem.
Morte, para alguns, explico. O que ela temia –muito mais que a preocupação virtuosa de não dar trabalho– era o sofrimento. Eu sempre entendi essa verdade, justificada por detrás de um discurso legitimamente humano.
No entanto, hoje já vivido, enxergo ainda outra: a pessoa não quer incomodar parentes e outros, notadamente filhos, justamente porque desde logo não nota que terão o bom cuidado em circunstâncias tais, ou seja, em palavras alternativas:
− Deus me poupe de ter esses benditos filhos cuidando de mim quando não tiver mais condições de autocuidado.
Outro dia, observei numa clínica de exames uma senhora de idade avançada, numa cadeira de rodas, acompanhada de duas mulheres cinquentonas, prováveis filhas. Que desvelo! Que carinho! Que delicadeza! Sem nada falar, ajeitavam a idosa na cadeira, arrumavam seu cabelo, sua roupa, davam-lhe água, indagavam de necessidade.
Talvez as aparências enganem. Seria uma bruxa e suas filhas maldosas e dissimuladas bruxinhas, infernizando em casa, escondendo em público uma dinâmica cruel? Não, isto é delírio, de fato acredito na versão virtuosa.
O que acontece é que os idosos podem eles mesmos observar, no trato diário com os parentes, certa frieza, descompromisso e indiferença, para dizer o menos. Filhos e filhas que não escutam os maduros pais, não têm paciência com suas opiniões e estórias contadas e recontadas. Podem ser os registros de uma vida, antes dedicada exatamente a esses mais jovens, alguns agora nem tanto.
O apego dos muito maduros pelas suas coisinhas, fotos, objetos, tudo antigo como os donos –até algumas de suas convicções−, entretanto carregados de simbolismo, essenciais à manutenção da identidade deles, à sua sanidade nesse crepúsculo de vida.
Lerdos e esquecidos, rabugentos ou implicantes, reclamões ou passivos, quando não simplesmente surdos, já não podem ser julgados como antes. Cada idoso ou idosa é uma individualidade, cada qual com sua vida, acertos e tropeços. Já não podem ser avaliados como um adulto comum, talvez necessitem ser avaliados com a régua lésbica de Aristóteles.
Portanto, quando sua Tia Filoca soltar suas pérolas e máximas, procure o significado oculto e… paciência. De outra forma, poderá escutar o que ouvi outrora e não gostei:
− Comporte-se, jovem, o seu dia chegará, se é que vai ficar velho! Eu sou velha, mas não sou trapo!
> José Roberto Fourniol Rebello é formado em direito. Atuou como juiz em comarcas cíveis e criminais em várias comarcas do estado de São Paulo. Nascido em São Paulo, vive em São José dos Campos desde 1964, atualmente no Jardim Esplanada. Participou do movimento cultural nascido no município na década de 60.