Domingo, bem cedinho, saí para caminhar –livre, leve e solto, como dizem. Havia madrugado, como de costume, mas a lembrar aliviado que não tinha mais de pegar no serviço às oito. Martelava na cabeça o comentário de um vizinho enxerido, no dia anterior, sempre cutucando: − E aí, doutor, vida ganha, hein?
Na caminhada respondi atrasado e apenas mentalmente ao despeitado: − Sim, invejoso. Sou um cidadão aposentado, porém com mais de cinquenta anos de trabalho, tenho descanso merecido. Estou tranquilo, pois possuo sentimento de vida feita, dever cumprido, mente revolvida, experiência e conhecimento. Como se não bastasse, sou bem lúcido na prática religiosa e feliz com minha mulher e prole. Tudo perfeitinho nesta maturidade. Passe ontem!
Será, leitor? Receio que não exatamente, ao menos não com essa certeza e simplificação. Mera e básica reflexão durante esse exercício, entre calçadas ruins e travessia de ruas movimentadas, revelou um desmoralizante descompasso entre a minha presunçosa autoanálise e aquilo que aprendi ao longo dos anos. Fiquei virtualmente nocauteado.
Como a gente não consegue definir com precisão a própria imagem! A imagem de si mesmo. Muitos o fazem com absoluto divórcio da realidade. Sim, leitor (ou leitora, né?), a leitura que você faz de si mesmo −eu sou bonito, inteligente, educado, honesto, alegre, generoso, bom pai, filho idem, cônjuge fiel, amigo leal, cidadão responsável, cumpridor de leis, dotado de espírito público, religioso dedicado, no confronto com uma desprezível quota de vícios ou pecados menores− não corresponde ao que as pessoas pensam de você. Pelo menos não inteiramente. É questão relacionada à autoimagem, narcisismo, para o que remeto você às obras de Freud e da psicologia, ou uma boa conversa com o terapeuta.
No entanto, não se desespere se alguém lhe disser que você não é nenhum exemplo de virtude; pode significar apenas que não o é por inteiro, tem lá suas boas ações ou intenções. Você é virtuoso, mas não como pensa ser, como também não pode personificar esse galã ou mocinha que você imagina. Espírito público, um pouco, quando se cuida de exigir dos outros. Vamos combinar: você tem tanto virtudes como graças e talentos, pouquinho de defeitos. Pretendo instigar lucidez, não a depressão, desculpe o mau jeito.
Comigo não é nem poderia ser diferente. A cada dia descubro uma faceta real do meu verdadeiro perfil e seguramente nunca vou desvendá-lo na sua inteireza. Revelo −só para exemplificar, pois aqui não é confessionário e você não é padre nem terapeuta− que tempo atrás descobri, algo consternado, que sou visto por muita gente da profissão como pessoa brava. Pensando bem, sou bravo de fato, mas aqui e ali, embora muita vez em má medida. Já fico, todavia, mais atento.
Na seara religiosa, recordo o ensinamento de São Tiago, de que o maior pecado do cristão é se achar sem pecado. Aponta o Evangelho, de outra face, o caminho da conversão: arrependimento, prática das virtudes −entre elas a da humildade− o amor a Deus e ao próximo.
Voltando à expressão “vida ganha”, nem tudo é um mar de rosas, nem para mim nem para ninguém. Como tive e tenho espinhos! A minha confiança se reduziu com esta mera análise. Entretanto, acabei ganhando em lucidez e resignação, sem perder a persistência. Dentre outros paradoxos abrangidos por esta suposta vida feita ou ganha, está a autoproclamada mente resolvida. Resolvida nada, cara-pálida!
Este assunto, a nossa mente, é o que menos fica redondo, difícil de explicar, até porque a ciência ainda apanha depois do gênio de Freud ter acabado por lembrar aos filósofos que o estabelecimento de uma ética universal é no mínimo complicado, para dizer o menos, quando se tem em conta a ação do inconsciente, dos desejos, dos impulsos. Peço perdão às demais genialidades, de Aristóteles a Kant, bem assim filósofos e intelectuais modernos, pela ousadia de cuidar do tema.
O descobrimento do inconsciente ou subconsciente, do chamado “o outro”, bagunçou tudo. Ao homem já não é dado controlar inteiramente sua mente pela razão, pela sua atividade consciente; é presa penosa de instintos primários. O “outro” −que regula desde sempre nossos batimentos cardíacos, a respiração, o sono, os movimentos automáticos, passando pelas emoções e pela autocura− é um senhor tirano de todo homo sapiens, para o bem e para o mal, fazendo-nos passar por maus bocados ao ressuscitar recalques.
Cabe a cada qual saber policiar esse mecanismo, por vezes antagônico, de consciente versus inconsciente, tirando proveito dessa interação. Mas convenhamos ser um tremendo desaforo esse virtual arquivo morto vir regular a nossa vida, que assim nunca estará feita.
> José Roberto Fourniol Rebello é formado em direito. Atuou como juiz em comarcas cíveis e criminais em várias comarcas do estado de São Paulo. Nascido em São Paulo, vive em São José dos Campos desde 1964, atualmente no Jardim Esplanada. Participou do movimento cultural nascido no município na década de 60.