Sempre que a questão da violência policial surge em um grupo, nas mídias sociais ou em carne e osso, a primeira pergunta que os mais apressados fazem é: “Você é a favor dos bandidos?”. É o tipo da pergunta para encerrar a conversa ante dela começar. Afinal, quem é o idiota que pode ser a favor dos bandidos?
Porém, a questão não é essa. Eu já lhe respondo que não sou a favor de bandidos, desejo que todo aquele que desrespeitar as leis pague por isso, acho que as leis são muito fracas para combater a criminalidade no Brasil, defendo penas severas, longas e sem esta “brincadeira” de começar a sair da cadeia com o cumprimento de um sexto da pena.
Mas, repito, o assunto não é esse. O assunto é a violência policial. É preciso separar uma coisa da outra. É claro que você já deve ter percebido que o motivo deste artigo é a mais recente chacina patrocinada pela polícia do Rio de Janeiro. Desta vez, entre 23 e 26 pessoas –nem os números são transparentes– foram mortas na Vila Cruzeiro, na região norte da cidade.
Vamos aos fatos
– Praticamente não houve sobreviventes. Detalhe: teve gente morta a facada. Diz pra mim: alguém que é morto a facada poderia estar reagindo à prisão?
– Desta vez, além do notório Bope, o Batalhão de Operações Especiais da PM, que até o cinema brasileiro endeusou, juntou com ele patrulheiros da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que até agora não havia sido usada nesta “guerra” que se trava no Rio de Janeiro.
– Pior de tudo é o que uma reportagem da “Folha de S. Paulo” apurou. Dos 23 mortos oficiais –apesar de as unidades de saúde e a própria PM terem admitido que 26 cadáveres saíram da Vila Cruzeiro–, acredite, 16 não possuíam nenhum mandado de prisão aberto, um ainda não foi identificado e uma mulher foi morta dentro de casa pelo que a própria polícia admitiu ter sido provavelmente uma bala perdida. Faça as contas: dos 23 mortos, apenas cinco tinham mandado de prisão expedido pela Justiça. Menos de 20%, menos de dois em cada dez mortos.
– O comandante do Bope, Uirá do Nascimento Ferreira, foi rápido no “gatilho” também ao falar com a Imprensa no mesmo dia da chacina. Disse, segundo a “Folha”, que “a operação foi planejada há meses, mas ocorreu em ‘caráter emergencial’ e ‘não tinha o objetivo de cumprir mandados de prisão’”. Faltou combinar com a PRF, que, diz o jornal, “alegou, em nota, que atendeu a um pedido de apoio para o cumprimento de mandados”. Estranho…
Acho que não é preciso dizer mais nada. Foi mais uma operação policial que não pode ter outro nome que não seja “chacina”. Não foi a primeira e, provavelmente, não será a última. A cientista social Sílvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, estima que mais de mil mortes por ano no Rio de Janeiro são decorrentes de ação policial. “A polícia do Rio escolheu a morte como método”, diz ela.
Mudando um pouco de região, não custa incluir aqui a morte de um portador de esquizofrenia, considerado pacífico e bom cidadão, em um bloqueio da PRF em Sergipe. A vítima foi parada por não estar usando capacete ao conduzir uma moto. A morte ocorreu por asfixia ao ser injetado spray de pimenta e gás lacrimogêneo no compartimento de presos de uma viatura com o “perigoso” elemento dentro dele.
O uso da força
Respondida a questão principal lá no segundo parágrafo, acho que ficou claro que eu não sou a favor dos bandidos, muito pelo contrário. Muito menos sou a favor da impunidade. Mas defendo uma polícia que cumpra a sua função constitucional sem cometer crimes.
A polícia faz parte das forças de segurança que o Estado –a soma do nosso país com o nosso povo– mantém para garantir a ordem pública e a segurança dos cidadãos. No Brasil e no mundo inteiro os estados nacionais possuem o monopólio do direito ao uso da violência física legítima.
O que é usar a violência física legítima? É quando o uso da força resulta de ação legal, necessária e proporcional, tendo como foco o interesse público e o respeito à dignidade da pessoa humana.
Que polícia eu apoio?
– Sou defensor da polícia, das Forças Armadas e de todas as instituições autorizadas a exercer o uso da força em defesa do Estado. Mas desde que a atuação delas obedeça à Constituição e a toda a legislação que regula este assunto.
– Polícia tem que usar de investigação e planejamento. Sem isso, ela chega sempre depois que a situação se agrava e acaba, em muitos casos, optando pela violência pura e simples.
– Em uma operação que envolveu o confronto com mais de 30 pessoas – como deve ter sido o caso na Vila Cruzeiro–, talvez fossem justificáveis uma ou duas mortes de elementos que reagissem à abordagem, mesmo assim caso a reação colocasse em risco os policiais ou outros cidadãos. É evidente que 23 ou 26 mortos classificam o resultado da operação como chacina.
– E tem mais: quem consegue acreditar que em uma operação nas tais comunidades da cidade do Rio de Janeiro, onde os bandidos usam armamentos moderníssimos, um confronto terminaria com todos os bandidos mortos, nenhum policial morto e nenhuma dessas armas apreendida? Parece conto de fada…
– A polícia que eu defendo deve explicar detalhadamente para a sociedade como trabalha e os resultados das suas operações. Vamos lembrar que o direito do uso da violência é dado ao Estado pela sociedade, ou seja, pelos cidadãos. O cidadão é o cliente final, certo?
Onde tudo isto acaba?
A falta de fiscalização e cobrança sobre a atuação das polícias é um grande estímulo à corrupção e ao surgimento de matadores que usam distintivo ou uniforme.
Eu me membro muito bem que, do final da década de 1960 até os últimos anos da década de 1970, quando os governos militares fecharam os olhos para a atuação de alguns grupos de policiais que foram usados para combater as ações de subversivos que queriam derrubar o regime, acabaram surgindo, como efeito secundário, os famigerados Esquadrões da Morte.
Eles exterminavam bandidos comuns e gente inocente, aplicando a pena de morte em quem não foi julgado e nem condenado. E, é claro, pena de morte não existe no sistema penal do Brasil.
Isto costuma terminar também com polícias que usam de tratamento diferente para ricos e pobres, fazendo o “favor” de defender os ricos do “ataque” dos pobres às suas riquezas e aos seus valores. Tem gente que defende uma polícia pacífica, educada e cumpridora das leis para a sua família e seus amigos; e defende outra, violenta, vingativa e mortífera para o “resto”.
A minha proposta é que a gente evolua um pouco na discussão sobre o papel e o desempenho das nossas polícias. Vamos defender a polícia e apoiá-la no seu papel de combater o crime. Mas desde que ela cumpra este papel obedecendo fielmente às leis.
Polícia bandida não é polícia. É simplesmente bandida.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.